Bordéus. O nome carrega em si um peso histórico cuja dignidade sobrepõe-se ao passado recente mais complicado do emblema do sul de França. Seis vezes campeão francês, este é o clube por onde passaram lendas gálicas como Alain Giresse, Patrick Battiston, Bixente Lizarazu e Zinédine Zidane.

Foi este legado que convenceu o fundo de investimento GACP, liderado por Joe DaGrosa, a comprar o clube por 100 milhões de euros em novembro de 2018. Sendo o presidente do Conselho de Administração do Bordéus desde então, DaGrosa é um dos mais recentes exemplos de empresários a investir neste universo. Porque há quem parta do futebol para o mundo dos negócios, e há quem faça o rumo inverso. 

As suas motivações, contudo, são tão transparentes quanto pragmáticas. O empresário de 53 anos, a residir em Miami, no estado da Florida, nos EUA, admite que, apesar de gostar de futebol, envolveu-se na área por ser uma boa aposta financeira que vai de encontro à sua especialidade, a recuperação de empresas em falência ou a caminho disso. No seu currículo, por exemplo, DaGrosa tem a recuperação de 248 restaurantes Burger King nos EUA, que unificou num franchise e depois revendeu. O próximo passo é fazer do Bordéus um clube vencedor.

O início da sua gestão no clube não foi o mais auspicioso, com o Bordéus a terminar em 14º lugar na Ligue One, o pior resultado desde 2004/05, quando ficou um lugar abaixo. Mas em defesa de DaGrosa, apenas 10 meses se passaram desde que adquiriu o clube da região da Aquitânia, sendo que o empresário também não promete resultados imediatos.

A seu ver, a política certa para tentar destronar o PSG é através da formação de jovens talentos e do investimento na academia La Plaine du Haillan, em conjugação com contratações cirúrgicas, dando o exemplo de Laurent Koscielny, defesa veterano de 33 anos que trocou o Arsenal pelos franceses. Contudo, as medidas para acabar com o domínio dos parisienses não passam só pelos esforços de clubes como o Bordéus, defendendo DaGrosa que é necessário que se formem condições para que a Ligue One deixe de ser uma liga vendedora, pois apenas a retenção de talento poderá criar competitividade.

Uma das armas que DaGrosa escolheu para o Bordéus dar o salto foi a escolha de Paulo Sousa para a equipa técnica, alguém que o empresário descreve como "um grande treinador que já foi um grande jogador". De resto, com o aconselhamento desportivo de Hugo Varela, o norte-americano tem noção de que o clube do sul de França também foi marcado pelo talento luso. Afinal de contas, este também foi o clube de Chalana (onde o “Chalanix" chegou a ser campeão), Pauleta (quarto maior marcador de sempre dos franceses, com 91 golos) e Toni (que treinou a equipa que venceu a taça Intertoto em 1995, o único título europeu do clube).

Foi na Soccerex Europe, o evento que nos dias 5 e 6 de setembro reuniu a indústria de futebol em Oeiras, que o SAPO24 falou com Joe DaGrosa, que para além das suas funções no Bordéus e do portfólio de empresas com que lida, acumula a posição de presidente da Soccerex.

Vem do meio do investimento financeiro e a sua especialidade tem vindo a ser recuperar empresas. Porquê mudar o foco para o futebol?

Em vários aspetos, é uma mudança, mas não é uma grande mudança. No meu meio faço turnarounds [recuperações de empresas], já fui bem-sucedido nisso várias vezes ao longo da minha carreira. Mas falando de forma mais generalizada, estou no ramo do capital privado. O que fazemos é comprar empresas, tentar fortalecê-las e depois tentar vendê-las e fazer lucro. Eu gosto desse processo e o Bordéus é, também, um pouco uma operação de turnaround. É tanto um desafio como uma oportunidade e é isso que nos entusiasma, a mim e aos meus parceiros.

Mas porquê o Bordéus, em específico?

Porque é um dos maiores clubes [em França], numa perspetiva histórica e de uma perspetiva de marca. É um clube maravilhoso, cheio de tradição, existe desde 1881. A cidade em si é absolutamente deslumbrante e tem um estádio fantástico. Por isso, tem todos os elementos para ter sucesso no futuro.

Falando em sucesso, a Liga Francesa tem sido caracterizada por ser menos competitiva que as restantes que compõem o top cinco europeu. Qual pensa ser o antídoto para isto?

Em última análise, pensemos nos ativos que França tem, que são jogadores fenomenais. Os clubes franceses enfrentam o desafio de ter de exportar esses jogadores para cobrir perdas financeiras, um pouco por toda a liga. Penso que os clubes da liga francesa gerem perdas de 500 ou 600 milhões de euros antes das transferências dos seus jogadores e estas são necessárias para cobrir esse défice. Esse é o problema fundamental. Há grandes jogadores em França — e isso é evidenciado pela forma como a sua seleção nacional se portou no Campeonato no Mundo —, mas eles tendem a ir-se embora. Para a liga francesa se cimentar como uma das de topo, ela precisa de reter muito mais talento.

Serão os direitos televisivos parte da solução?

Enorme, uma parte enorme da solução. Nós estamos a entrar num novo ciclo e a assistir a um aumento bastante significativo em receitas de direitos televisivos pelos jogos da liga francesa. Estamos muito felizes com isso; vemos uma boa subida e vai ser ainda maior a nível internacional. Mas os números ainda são pálidos em comparação à Premier League e a La Liga.

Focando-nos especificamente no aspeto competitivo, o PSG tem dominado a Ligue One na última década. Qual é a estratégia do Bordéus para contrariar esta hegemonia?

A nossa estratégia é encontrar talento em França e fazê-lo crescer na nossa academia, com a visão de que poderemos ser competitivos sem pagar centenas de milhões de euros em transferências. Estamos preparados para gastar dinheiro em jogadores, disso não haja dúvida, mas consideramos que o sucesso a longo prazo depende da construção de uma ótima academia. A dada altura, o Bordéus teve uma academia de top 10 na Europa e queremos restaurar esse estatuto no panorama europeu. Dominamos geograficamente o sudoeste de França, não há nenhum clube grande perto de nós.

Bem, há o Toulouse...

Bem, com todo o respeito pelo Toulouse, nós consideramos ter uma vantagem competitiva sobre eles no mercado. Ainda não a explorámos e precisamos de o fazer.

Joe DaGrosa
créditos: Gualter Fatia/Getty Images

Acredita então que é mais vantajoso para o Bordéus investir a nível formativo do que fazer grandes transferências?

É preciso atingir um equilíbrio. Mas direi que o Bordéus tinha pouco investimento feito na sua academia e eu creio que há muitas coisas qualitativas em que podemos fazer melhor. É tudo uma questão de termos bons profissionais na organização. Por isso é que recrutámos Souleymane Cissé do Mónaco [Diretor Técnico de Performance] e trouxemos alguém do Benfica. Queremos construir uma academia de topo mundial e acho que vamos conseguir. O talento está lá, mas precisamos da equipa certa para desenvolvê-lo. Temos de investir nas infraestruturas, que é o que estamos a fazer. Quando os pais pensarem onde é que querem que os filhos joguem, queremos que considerem primeiro no Bordéus, antes de todos os outros.

Li numa entrevista sua que considera o Bordéus, neste momento, "uma equipa em transição". Quais são os próximos passos?

Bem, encerrámos agora [no início de setembro] o mercado de transferências e trouxemos alguns jogadores muito bons. Trouxemos o [Laurent] Koscielny do Arsenal, o que foi uma grande movimentação. O facto de alguém do seu calibre juntar-se a uma equipa que ficou em 14º lugar na Liga Francesa, se pensarmos realmente nisso, é porque Laurent Koscielny fez mesmo um investimento connosco no sucesso do clube no futuro. É uma prova da sua visão e da nossa habilidade de explicarmos os nossos planos.

E no que tocou ao restante defeso?

Houve alguns jogadores que gostaríamos de ter contratado e com os quais não conseguimos chegar a acordo, mas no cômputo geral concluo que nós estivemos razoavelmente bem, considerando que só temos o clube há 10 meses. Foi a nossa primeira janela de transferências.

No leque dos jogadores que trouxe para o Bordéus está um que passou pelo futebol português, o Mexer [internacional moçambicano com passagens no Sporting, Olhanense e Nacional].

Sim, foi um deles. Mas também trouxemos um jogador da seleção coreana [Ui-jo Hwang], um jogador da seleção italiana [Raoul Bellanova, internacional sub-20] e outro da Suíça [Loris Benito, que passou pelo Benfica]. Posso dizer que trouxemos vários jogadores de calibre nacional. Estamos também a tentar tornar a equipa mais nova e vamos ver nos próximos meses como estamos e olhar para a janela de transferências de inverno.

Quanto à escolha de treinador, porquê Paulo Sousa?

É um treinador de classe mundial. Bem, a realidade é que Portugal é uma fábrica de talentos, tanto no campo como fora dele. Muitas vezes os grandes treinadores foram grandes jogadores e o Paulo Sousa é caso disso. Recrutar o Paulo foi um enorme investimento por parte do Bordéus e estamos muito contentes por tê-lo connosco.

Tinha noção, antes de contratar Paulo Sousa, de que o Bordéus tem uma certa ligação histórica com jogadores portugueses?

O meu parceiro, Hugo Varela, é português e ele fez um óptimo trabalho ao explicar-me as ligações fortes [do Bordéus] com o vosso país e também me pôs a par do quão forte Portugal é a variados níveis no mundo do futebol. Sabemos que o talento está aí.

Está a par do futebol português?

Não tanto quanto gostaria. Certamente conheço os clubes grandes — dos quais estamos a tentar obter talento (risos) — e sei o quanto Portugal se tem dado bem. O meu problema é que eu giro uma firma de capital privado e a área desportiva é apenas um vértice. Também temos seguros, imobiliário... por isso sou arrastado em várias direções. Mas digo-lhe uma coisa: quanto tenho dúvidas quanto à performance de Portugal, só tenho de perguntar a qualquer um dos meus três filhos, porque eles seguem futebol de perto.

Estamos perante uma fase em que se vê cada vez mais empresários e fundos de investimento a virarem-se para o futebol enquanto área de negócio. Qual pensa ser a razão para esta tendência?

Há um número finito de grandes clubes a comprar. Se pensares nas cinco grandes ligas europeias, estas têm uns 100 clubes, mas só metade deles é que alguém consideraria mesmo comprar. Mas diríamos que o número é 70 e não 50. Temos 70 clubes interessantes a considerar, mas alguns deles não estão à venda — não podes comprar o Real Madrid ou o Barcelona. Então, talvez apenas 30 ou 40 estejam teoricamente à venda. Para estes há um número cada vez maior de bilionários, famílias endinheiradas, investidores institucionais, que compreendem que o desporto é um ótimo investimento a longo prazo e por isso os valores vão continuar a aumentar.

Mas por outro lado, vê-se às vezes os adeptos algo hesitantes e céticos quanto à entrada de investimento externo nos seus clubes. Pensa que estas preocupações são legítimas? Como é que se lida com isto enquanto investidor?

Eu considero que os fãs devem procurar por investidores inteligentes e solidários, venham de onde vierem. Porque, no final de contas, acredito que a maior parte dos adeptos quer ter uma equipa vencedora e que, depois de todo o hype inicial, fiquem menos preocupados quanto a quem detém o clube. É também muito importante que os proprietários se comportem de uma forma que respeite os fãs. É natural que, seja que clube for, os adeptos pensem duas vezes quanto a alguém que venha de fora até que essa pessoa se mostre de confiança.

Ainda em relação ao investimento, também houve uma aposta forte no futebol feminino por parte do Bordéus. Como é que isso se tem processado?

Tem sido ótimo. O grande desafio do futebol feminino, não apenas em França mas pelo mundo, é que os patrocinadores ainda não estão 100% a bordo. Até vermos receitas televisivas e patrocínios a chegarem, esta é uma iniciativa que perderá dinheiro a curto prazo. Nós achamos que é a coisa certa a fazer, pensamos que vai vingar no futuro, a UEFA já tomou medidas para fazer do futebol feminino mais interessante financeiramente, por isso estamos a ver o início de uma onda. Uma das coisas que ouvimos na Soccerex da parte da FPF é o seu investimento no futebol feminino, e por isso não estamos sozinhos em considerar esta uma tendência a longo prazo.

A menção à Soccerex faz-nos recordar que o evento foi organizado aqui em Portugal. Considera que todos os critérios necessários foram cumpridos?

Sem dúvida alguma. Em primeiro lugar, o apoio da Liga, da Federação, da UEFA até à FIFA. Recebemos muito apoio para fazer o evento em Portugal e estamos felizes por estarmos em Oeiras, é um município fantástico. Temos uma parceria de vários anos estabelecida e esperamos continuar em Oeiras.

Na sua declaração na cerimónia de abertura disse que iam ser discutidos alguns dos temas mais urgentes do futebol. Quais é que pensa serem merecedores de maior atenção?

Certamente a questão da reconfiguração das equipas de topo que querem jogar nas competições da UEFA em detrimento de clubes mais pequenos. É um assunto muito sério e que tem de ser encarado.

Está a falar da suposta criação de uma Superliga Europeia?

Sim, toda a gente tem posições diferentes. Eu tenho a minha, mas é necessário haver um fórum como o Soccerex para haver uma troca de opiniões quanto a isso.

Tem organizado estes eventos nos EUA, na Europa e na Ásia, o que é um sinal da globalização da modalidade. Tendo em conta o quanto esta se tem espalhado pelo mundo, quanto mais pensa que o futebol pode crescer?

O céu é o limite. Nós estamos a falar numa tendência, não de três ou quatro anos, mas de 30 ou 40, em que o futebol tem crescido continuamente. Não vai crescer de forma igual pelo mundo, mas enquanto desporto, vai crescer mais rápido do que qualquer outro, particularmente nos EUA e na China.

Esses são ainda dois mercados florescentes.

Sim, e estamos quase no ponto crítico em ambos os mercados. Eu acho que a China está mais avançada que os EUA, porque ainda temos outros três grandes desportos. Como já disse noutras ocasiões, o baseball está em declínio, a NBA e NFL vão se manter bem, mas há espaço para o futebol para se tornar num desporto importante nos EUA.

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