But to me it seems quite clear

That's it's all just a little bit of history repeating

  • Propellerheads feat. Shirley Bassey

Em 1971, os psicólogos Philip Brickman e D.T. Campbell cunharam o termo hedonic treadmill, ou “adaptação hedónica”, no seu ensaio “Hedonic Relativism and Planning the Good Society”. Segundo este conceito, à medida que uma pessoa vai ganhando mais dinheiro, as expetativas e os desejos que vai tendo ao longo da sua vida também aumentam; o resultado é que o seu ganho em termos de felicidade é nulo – pois que se mantém equilibrado, nunca subindo de tom, como numa passadeira rolante – treadmill – onde caminhamos sem sair do mesmo sítio. Resumidamente: as pessoas têm uma tendência para manter um nível básico e estável de felicidade, apesar de quaisquer acontecimentos externos.

Tal conceito pode estar na origem do regresso de Jorge Jesus ao Benfica, após um ano em que ganhou praticamente tudo o que havia para ganhar no Flamengo, em que conquistou o amor de todos os adeptos do clube brasileiro, em que recebeu elogios dos quatro cantos do planeta futebolístico. E em que ganhou muito dinheiro ao fazê-lo, claro. Mas isto não parece ter sido suficiente para o treinador português – seja pela máxima moderna de que o futebol no Brasil, pelo menos ao nível de clubes, perdeu imenso terreno para o seu congénere europeu, seja pelas saudades que Jesus tinha do seu país, seja por ter sentido que o seu trabalho, ali, estava feito. Ou seja, a felicidade de Jorge Jesus precisava de regressar a um ponto estável – algo que o próprio só conseguiria aceitando um novo desafio.

O desafio consistiu em voltar ao sítio onde foi mais feliz ao longo da sua carreira, procurar reerguê-lo para níveis aceitáveis de felicidade benfiquista. E foi assim que, não numa manhã de nevoeiro, mas após uma madrugada de trovoada, com Tupã – manifestação divina do trovão – a abençoar a sua viagem do Brasil para Portugal, Jorge Jesus voltou a pisar território luso, não para passar férias ou rever amigos mas para pensar imediatamente no seu futuro profissional. À chegada, foi brindado por um país que nunca deixou de lhe sentir carinho... Ou quase: os adeptos do Benfica odiaram-no naquele ano de 2013, em que Kelvin lhe estragou os planos, Ivanović lhe cuspiu na cara e Ricardo Pereira se riu do seu cadáver; os do Sporting odiaram-no quando perceberam que um nome, por si só, não ganha campeonatos; os do FC Porto, bem, esses odiaram-no e ainda odeiam, apesar da amizade com Pinto da Costa.

Mas Jesus voltou, com toda a pompa e circunstância. Dezenas de repórteres no aeroporto, perseguições pela auto-estrada fora, diretos desinteressantes e opiniões pouco fundamentadas encheram nessa terça-feira as televisões, como se mais nada tivesse ocorrido no mundo desde que o treinador português voltou a entrar nas contas do Benfica. O catolicismo adora uma boa história de absolvição. Ver alguém que saiu a mal do Benfica, com processos judiciais e bocas de parte a parte, com promessas de que nunca mais lá voltaria, regressar ao clube que mais títulos lhe deu é um ato litúrgico, beatífico. A ideia de base é a de que se Jorge Jesus pode ser perdoado, todos nós o seremos. Basta que tenhamos fé.

Ainda assim, o amadorense, apesar das suas promessas – a de jogar o triplo, essencialmente – terá que percorrer uma longa via sacra até que o possam canonizar: terá de devolver a glória – e devolver a glória significa conquistar troféus – a um Benfica que já celebrava o campeonato em fevereiro e acabou por perdê-lo em julho. Terá de devolver o futebol, na sua concepção romântica de jogo bonito, ao Estádio da Luz e aos demais onde se apresente. Terá de mostrar que o seu regresso não foi em vão, mas sim uma consequência lógica da sua qualidade como treinador. Terá de provar que não é qualquer um que ganha num Brasil que ainda não se refez, emocional e futebolisticamente, dos 7-1.

Só que Jorge Jesus regressa a um lugar onde já foi muito feliz, vencendo três campeonatos, uma Taça de Portugal, uma mão cheia de Taças da Liga e chegando a duas finais da Liga Europa. E talvez seja essa a raiz do problema. O ditado, a sabedoria popular, diz-nos que não devemos regressar aos lugares onde já fomos felizes. A nostalgia pode ser um bloqueio mental à evolução. Mas isso pouco importará, pelo menos nestas primeiras semanas: Jesus voltou e para o ano tudo voltará a ser vermelho.

A história repete-se?

A realidade, no entanto, teima em fazer-se ouvir. Lembramo-nos de um outro grande regresso, anunciado como se houvesse caído maná dos céus: o de José Mourinho ao Chelsea, em 2013. Um regresso “especial”, e não apenas por estarmos a falar do Special One, o homem que devolveu o campeonato inglês ao clube londrino após meio século de penúria, acrescentando-lhe umas taças e boas prestações europeias (que, lamentavelmente para os blues, não deram em título). Quando saiu pela primeira vez, em 2007, ao português só lhe faltava ter uma estátua à porta de Stamford Bridge. Quando regressou, só lhe faltou uma procissão.

Após um percurso imaculado no Inter de Milão e de uma experiência satisfatória, mas não galáctica, no Real Madrid, Mourinho reentrou no Chelsea, passando por uma (nova) primeira época de “transição” (palavras suas), e reconquistando o campeonato na seguinte, acrescentando-lhe ainda uma Taça da Liga Inglesa. Mas o pior viria depois, e o “bom filho que a casa tornou” passou por um dos seus momentos mais baixos enquanto treinador: uma discussão com a médica Eva Carneiro, em campo, que acabaria com a saída desta do clube e com uma ação em tribunal. Mourinho não conseguiria recuperar desse episódio, e a equipa também não: acabou despedido em dezembro de 2015, com 9 derrotas em 15 jogos na Premier League.

Se o assunto é a Premier, nem é preciso focarmo-nos exclusivamente em treinadores. Paul Pogba é outro caso de um regresso que prometeu muito e que tem gorado expetativas. Formado na academia do Manchester United, o francês saiu para a Juventus em 2012, após se recusar a assinar um novo contrato com a primeira equipa (o que lhe valeu, à altura, críticas do eterno Alex Ferguson). Não que Pogba fosse um ícone do clube: estava a dar ainda os primeiros passos na sua carreira, e jogou apenas três jogos na equipa principal. Mas era um talento em potência, tendo “dado” uma FA Youth Club aos Red Devils.

A sua saída poderia ter constituído um entre tantos episódios de “traição” mas, quatro anos depois, tudo se perdoou: Pogba regressou ao Manchester mediante o pagamento de 105 milhões de euros ao clube italiano, um recorde para a época. Conquistou uma Liga Europa e uma Taça da Liga Inglesa pelos Red Devils, mas as críticas perseguem-no desde então, com uma alegada falta de disciplina e de cultura tática no topo da lista. No início desta época, o médio deixou em aberto o seu futuro; ficou em Inglaterra, mas viu-se fustigado por várias lesões. Acabou por não conseguir ganhar troféu algum, ficando-se por um terceiro lugar na Premier League e por uma meia-final da Liga Europa.

E se para alguns Jesus pode ser o nome de Deus, a verdade é que nem Deus parece estar imune a esta maldição. Em 1994, Diego Maradona regressou não a uma equipa, mas a um torneio onde se fez religião: o Campeonato do Mundo de Futebol. Acabou por ser expulso após apenas dois jogos, frente à Grécia e à Nigéria, por ter acusado positivo para efedrina, uma substância proibida. Um final de carreira inglório para um homem que carregou a Argentina, tanto a nível futebolístico como emocional. Como treinador, regressou a estas mesmas lides em 2010, mas saiu de forma igualmente inglória: uns pesados 4-0 frente à Alemanha, nos quartos-de-final.

Também há exemplos de quem se fez grande jogador mas não conseguiu encarnar esse espírito como treinador: Thierry Henry voltou à sua primeira casa como profissional, o Mónaco, em 2018, mas conseguiu apenas 4 vitórias em 20 jogos. O mesmo para Julen Lopetegui, que de guarda-redes suplente do Real Madrid, nos anos 90, foi o treinador dos 5-1 no Camp Nou, em 2018 (redimiu-se este ano, fazendo boa época no Sevilha, e enfiando uma Liga Europa no bolso). E Jesus tem também um exemplo da “maldição” na sua própria “casa”: José António Camacho devolveu o respeito ao Benfica, entre 2002 e 2004, conquistando uma Taça de Portugal frente ao (futuro) campeão europeu FC Porto. Do seu regresso, em 2007, já poucos se lembram.

Por mares dantes navegados

Nem sequer é necessário focarmo-nos no futebol para encontrar exemplos de regressos que acabaram mal para o regressado. Um exemplo histórico acabou, inclusive, em morte. James Cook, capitão da Marinha Real Britânica e explorador, é hoje conhecido não só pelas viagens que efetuou pelo Oceano Pacífico (foi dele o primeiro contacto europeu formal com o Arquipélago do Havai), mas também pelos contornos da sua morte, violenta, em 1779.

Nesse mesmo ano, Cook atracou na maior ilha do arquipélago, com o mesmo nome deste, um evento que coincidiu com o Makahiki: um festival em honra de Lono, Deus havaiano da fertilidade e da agricultura (e de outras coisas, que os Deuses são por natureza própria multitaskers). À sua chegada, Cook, e sua tripulação, foram tratados como a encarnação do próprio Lono. Seguiram-se banquetes, festividades diversas, encontros sexuais entre europeus e polinésios, durante um mês que parecia paradisíaco.

Mas o paraíso depressa se revelou túmulo. A morte de um membro da tripulação de Cook fez ver aos havaianos que, afinal, aqueles “Deuses” eram meros mortais, e Cook foi instado a resumir a sua exploração do Pacífico. Mas o mau tempo não lhe daria tréguas, e o capitão foi obrigado a regressar à ilha pouco depois, para reparar um dos seus navios. Os habitantes da ilha, afrontados, receberam-no com o oposto exato da pompa com que o tinham acolhido: com insultos, com pedras e com roubos, obrigando Cook a uma resposta mais musculada, que culminou com a tentativa de rapto do Rei Kalani'ōpu'u. Foi sem sombra de dúvida a pior decisão da sua vida: ao preparar-se para abandonar o Havai, com o rei pela mão, Cook foi assassinado pelos havaianos, na maior das provas de que regressar onde se foi feliz, mesmo que para salvar a vida, não resulta.

Play it, Sam...

Os “regressos”, na música, são o pão nosso de cada dia – especialmente no que a grandes artistas ou bandas diz respeito, especialmente se estivermos a falar de nomes que tenham marcado um determinado momento ou geração, que tenham estado afastados dos palcos e que aproveitem o mui humano sentimento de nostalgia para acrescentar mais uns euros à sua conta bancária. Como, por exemplo, os LCD Soundsystem, que anunciaram o seu fim, em 2011, com um gigantesco concerto de despedida no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Os fãs do lado mais “alternativo” da música diziam adeus a um dos grupos que melhor capturou o zeitgeist do início do milénio... Até que James Murphy, mentor dos LCD, decide anunciar o seu regresso aos palcos em 2015 – o que lhe valeu uma chuvada de críticas, mais ou menos amenizadas pelo facto de “American Dream”, primeiro disco desde o “fim”, se ter apresentado como um dos melhores álbuns da década que findou.

Contemporâneo dos LCD Soundsystem, Kanye West também assinou um regresso aos palcos, em 2016, para apresentar o então novo “The Life of Pablo”, disco (uma vez mais) envolto em polémica por causa de (uma vez mais) uma “bicada” a Taylor Swift, némesis do rapper e produtor. Essa digressão tinha como objetivo as estrelas, algo comum na mentalidade de Kanye: um palco flutuante, um jogo de luzes extraordinário, um contacto mais próximo entre o artista-Deus e o público-fiel. Durou apenas 41 concertos: Kanye sofreu um esgotamento nervoso, a meio, assumiu-se apoiante de Trump, acusou Jay-Z de o querer mandar matar, e foi internado num hospital – as repercussões desse momento ainda hoje se fazem sentir, e a doença bipolar de que Kanye sofre apontada como estando na sua origem.

Em 2021, poderemos inclusive assistir a um outro regresso, o dos Bauhaus, confirmados que estão no festival EDP Vilar de Mouros. Expoentes máximos do chamado “rock gótico”, os britânicos assinaram uma excelente carreira entre 1978 e 1983, até que decidiram pôr um fim na sua atividade (impulsionando a carreira solo de Peter Murphy e a ascensão de uma outra óptima banda, os Love And Rockets). Em 1998, fizeram uma curta digressão de “ressurreição”, que voltou a ganhar corpo em 2005, com uma atuação em Coachella e a ideia de gravar um álbum novo (“Go Away White”, editado em 2008). Porém, este foi tudo menos um reencontro pacífico. Em 2006, após uma discussão feia em Utrecht, os Bauhaus despediram-se uma vez mais do mundo em Paredes de Coura, perante uma chuva insidiosa e uma multidão de fãs acérrimos... Anunciando as “pazes” em 2019, sendo que só a pandemia os impediu de pisar solo português este ano.

Regressar é preciso

Claro que também há aqueles regressos que, inesperados ou não, acabam por correr às mil maravilhas. Olhe-se para o mundo dos negócios e para figuras como Steve Jobs, o “pai” da Apple e o homem que, grosso modo, mudou a forma como olhamos para e consumimos a tecnologia nos dias que correm. Em 1985, Jobs foi “expulso” da empresa, após uma disputa com John Sculley, diretor-executivo da Apple. Regressou em 1996 e os resultados não poderiam ter sido melhores: não só salvou a empresa de uma falência certa, como ainda conseguiu recuperar o terreno perdido para a rival Microsoft na década de 90. Para além, evidentemente, de ter conseguido colocar no dicionário palavras tão debitadas como “iPhone”, “iPod” ou “iPad”.

Jobs não foi caso único no que toca a filhos pródigos: o empresário norte-americano Howard Schultz ajudou, nos anos 80, uma pequena cadeia de cafés de Seattle a tornar-se numa marca reconhecida internacionalmente. O seu nome? Starbucks. Em 1987, Schultz tornou-se diretor-executivo da empresa, abandonando o posto em 2000. Nos anos subsequentes, a Starbucks perdeu metade do valor de mercado que tinha quando o empresário saiu, até que o seu regresso, em 2008, voltou a colocar a empresa no bom caminho. No próprio dia em que foi anunciado esse regresso, as ações da Starbucks subiram 8%... e, em 2017, quando Schultz voltou a sair, tinham aumentado 70%.

Outro caso envolve um nome que se tornou algo badalado ao longo do último ano: o de Michael Bloomberg, candidato à presidência pelo Partido Democrata, perdendo tal lugar para Joe Biden. Antes de enveredar por uma carreira política, o ex-presidente da câmara de Nova Iorque conseguiu transformar o seu apelido numa gigantesca empresa de tecnologia e de dados financeiros, com escritórios em 173 países; saiu em 2001, mas voltou em 2014, para uma vez mais ocupar o cargo de diretor-executivo. A Bloomberg L.P. tem sofrido um ligeiro decréscimo ao longo destes últimos anos, no que toca ao seu valor de mercado, mas é ainda uma marca indelével do mundo das finanças.

E agora, Jesus?

Deveria sequer Jorge Jesus ter saído de um lugar onde era amado como, bem, Jesus Cristo? A sua decisão talvez pareça algo incompreensível, após todas as declarações públicas de afeto ao Flamengo, após uma renovação de contrato e após ter prometido lutar pelo Mundial de Clubes. Claro que, no futebol, o que é verdade hoje amanhã é mentira, e claro que todos os ídolos têm pés de barro. Talvez tenha sido aliciado pelo projeto, talvez tenha sido pela pandemia, talvez seja para encher a sua conta bancária. A verdade não é neste momento mais que especulação.

Seja como for, o (novo) trabalho de Jorge Jesus no Benfica será árduo. Fazer esquecer o passado maligno, concentrando as mentes dos adeptos apenas naquilo que existiu de bom, será o primeiro passo. A derrota frente ao PAOK e a precoce eliminação da Liga dos Campeões não foi o início desejado, ainda que não destrua a premissa de que Jesus está de volta a um lugar onde já foi feliz. Mas não esqueçamos que também terá de voltar a um outro, onde se ajoelhou...

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