Foi na passada quinta-feira, na estreia europeia de Rúben Amorim, que finalmente aconteceu. Ao 10.º jogo do treinador à frente dos arsenalistas, o Sporting de Braga caiu. Perdeu. A série de nove jogos sem derrotas, onde se contabilizam feitos históricos como as vitórias no estádio da Luz e do Dragão, terminou além-fronteiras, em Glasgow, num recinto em que nenhum clube português conseguiu ganhar, de uma forma cruel e traiçoeira, aos pés do Rangers de Steven Gerrard.

Mas a primeira derrota de Amorim está longe de ser o fim do "efeito chicotada psicológica" que a equipa poderia sentir desde que Ruben Amorim substituiu Sá Pinto. Para isso, basta dizer que os primeiros 60 minutos na Escócia, em que o Braga fez dois golos, foram provavelmente os melhores desde que o antigo médio internacional português chegou ao comando técnico da equipa do Minho. O que foi conseguido nesta primeira série de 11 jogos (nove vitórias, um empate e um derrota), vai muito além disso e mostra que Portugal tem um novo treinador a que devemos ficar atentos.

I - Do polivalente, se fez um treinador

Ver Rúben Amorim como treinador não é surpreendente. Fernando Marques, do site de análise futebolística Lateral Esquerdo, é o primeiro a dizê-lo ao SAPO24: "Parece-me claro que o Ruben Amorim, mal deixou de ser jogador, estava muito bem preparado e tinha as bases necessárias para ser treinador. E quando digo as bases, digo: sabia interpretar o jogo. Repare, ele quando era jogador, tanto jogava como lateral direito, como médio defensivo, como médio centro... Essa polivalência transmite conhecimento do jogo e interpretação. Ele estava muito bem preparado para ser treinador".

Bruno Simão, amigo de infância do atual treinador do SC Braga, que partilhou o balneário com Rúben Amorim como colega de equipa e como treinador, reitera não ser surpresa nenhuma que Amorim, que sempre mostrou ser "muito culto" e que em campo "sabia perfeitamente aquilo que tinha de fazer", fosse dotado de um imenso "rigor técnico-tático", e que saltasse do relvado para o banco.

Provavelmente não haverá resumo melhor de Rúben Amorim enquanto treinador do que o momento em que Simão (há cerca de um ano e depois de ter recuperado de um grave acidente de mota que colocou a sua vida em risco) mandou uma mensagem ao velho amigo depois de ter descoberto que este ia assumir o comando do Casa Pia.

"Depois do meu acidente, mandei-lhe uma mensagem. Tinha sabido por terceiros que ele ia começar como treinador — há algum tempo que não falávamos apesar de termos uma relação próxima — ele estava a tentar manter o segredo. Mandei-lhe uma mensagem a dizer 'queres contar com o melhor lateral esquerdo desta divisão para a tua equipa?' e ele recusou", conta-nos Bruno Simão, atualmente ao serviço do Torreense.

"Respondeu-me tal e qual assim: 'Mano, não me leves a mal, não vamos confundir a amizade com o trabalho. Tu és um jogador caro para o meu plantel e mais do que isso, neste momento tenho três jogadores para a tua posição'. E eu 'ok, não levo a mal obviamente, entre nós não há disso. Tenho pena, mas quero-te dizer uma coisa, tenho a certeza absoluta que vais ter muito sucesso como treinador, vais fazer uma grande carreira. Tens o perfil ideal para ser treinador de futebol, tens uma cultura de futebol gigante'", completa.

A verdade é que o plantel do Casa Pia ainda iria sofrer mudanças e no final acabaria mesmo por contar "com o melhor defesa esquerdo" do Campeonato Nacional. Bruno assistia assim, na primeira fila, aos primeiros passos de um dos melhores amigos enquanto treinador. O que nos leva à questão: qual é a diferença entre o Rúben jogador e o Rúben treinador?

"Era um jogador de balneário autêntico, amigo, a puxar por todos, responsável, muito brincalhão. Enquanto treinador, consegue manter tudo isso, mantendo aquela linha que se deve ter de que há momentos para brincar e há momentos para trabalhar", revela Simão. No entanto, realça sobretudo a forte ligação que cria com os jogadores.

"Por isso é que toda a gente do Casa Pia fala muito bem dele, todos os jogadores são super fãs do Rúben enquanto treinador e dos métodos dele. Ele tem as duas coisas: é muito culto a nível de futebol, a nível do pormenor técnico-tático, estuda tudo ao pormenor e tem pessoas a trabalhar com ele com a mesma ideia de jogo que ele passa. E tem uma parte importante que não se pode esquecer: é que o jogador antes de ser jogador é um ser humano e ele sabe-o; ele lida com isso e tem toda a gente do lado dele, quem joga e quem não joga", acrescenta.

A história de Rúben Amorim enquanto treinador do Casa Pia foi, contudo, breve e tumultuosa. Depois de, num jogo diante do Oriental, ter dado indicações para dentro de campo, deu entrada uma queixa da Associação Nacional dos Treinadores de Futebol: "Constatámos que o estagiário Rúben Amorim esteve, de forma permanente, a dar instruções para o campo. Os factos consubstanciam um ilícito disciplinar que importa registar, em prol da verdade desportiva", lia-se na denúncia, assinada por José Pereira.

O Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol atuou de forma extremamente pesada para com o clube lisboeta, multando-o em 14 mil euros, retirando-lhe seis pontos e sentenciando a equipa a cinco jogos à porta fechada. Além disso, o próprio "treinador estagiário", que por ter apenas o Grau I do curso de treinador estava impedido de dar indicações para dentro de campo, foi suspenso três meses, multado em 2.600 euros e inibido de ser inscrito como treinador durante um ano.

Menos de um mês depois, foi instaurado um novo processo disciplinar a Rúben Amorim e ao Casa Pia pelas mesmas razões, desta feita pelo facto do antigo médio do SL Benfica, SC Braga e Belenenses ter orientado a equipa num jogo diante do Sporting Ideal — que terminaria com uma vitória por 4-0 do conjunto lisboeta.

A situação intoxicava o ambiente e a 22 de janeiro de 2019 o inevitável aconteceu, com o Casa Pia a anunciar o fim do estágio de Rúben Amorim devido às "implicações desportivas e financeiras do Acórdão [do Conselho de Disciplina da FPF]". Rúben e a sua equipa técnica saíam assim de Pina Manique, mas um novo desafio aguardava-os no Minho; primeiro na equipa B do Braga, depois na equipa principal dos arsenalistas. De Lisboa ficava só, no recurso, a memória de uma pena pesada da Federação, mas que juntamente com a ida de Silas para o Sporting CP, abria no mundo do futebol uma importante discussão sobre o longo processo da formação de um técnico até poder ser inscrito como treinador principal e orientar a equipa na primeira liga e nas competições europeias.

"Com treinadores como Ruben Amorim e Silas em dois dos principais clubes portugueses, há que discutir se o processo de formação de um treinador em Portugal, nomeadamente em questões de duração, porque demora muitos anos até que um treinador tenha o nível suficiente para treinar na primeira divisão e também em provas da UEFA. Rúben Amorim, sobretudo ele, tem demonstrado que a formação nem sempre exige uma linha reta, não é preciso ter 10 anos ou 12 de formação para um treinador ser competente", defende Tomás da Cunha, comentador na Eleven Sports e na TSF ao SAPO24.

"Há um cruzamento de ideias, de experiências que podem dar conteúdo a um treinador. O contacto direto com os jogadores é algo prático do dia-a-dia, não se aprende em curso algum e, sobretudo, em termos de duração, as instituições que o definem poderão ter de efetuar algumas alterações para que o processo seja mais acessível aos treinadores. Agora, claro que havendo um regulamento, Ruben Amorim e Silas estão a contrariá-lo e isso também não é o ideal para o futebol português, porque ter dois treinadores portugueses nas provas europeias que não podem dar indicações acaba por dar uma imagem de alguma falta de profissionalismo por parte dos clubes, embora os culpados não sejam diretamente Ruben Amorim e Silas", refere ainda o comentador desportivo.

II - A construção de um Braga invencível

De Lisboa, excluídos problemas, sobrou uma ideia: a de um futebol diferente, ao do habitual. A inovação de Rúben Amorim encaixou perfeitamente na ambição de Sporting de Braga — que com Ricardo Sá Pinto nunca conseguiu atingir o seu potencial máximo. O resultado? Um início de sonho. O antigo médio estreou-se com uma goleada por 1-7 ao Beleneses e venceu por cinco vezes os grandes em jogos distribuídos pelo campeonato e Taça da Liga. Nessa mão cheia de vitórias, incluiem-se duas ao Sporting, duas ao FC Porto e uma ao Benfica.

Se o feito parece grande à primeira vista, fica maior quando aprofundamos a pesquisa e percebemos que o Sporting de Braga não vencia no estádio da Luz há 65 anos e no Dragão há 15. Mais: desde Jaime Pacheco (Boavista, 1998/99) que um treinador ao serviço de um clube que não um dos grandes não vencia na casa das águias e dragões na mesma temporada. A cereja no topo do bolo? A conquista da Taça da Liga, o primeiro título dos Guerreiros do Minho desde a Taça de Portugal em 2015/16.

Mas como é que Rúben Amorim transformou uma equipa que apenas conseguia mostrar o melhor de si na Liga Europa, de processos previsíveis e de prestações irregulares no campeonato numa equipa que rapidamente chega ao pódio da liga e vence uma competição doméstica?

"O primeiro grande trunfo do Ruben Amorim foi a clareza nas ideias e a ambição que trouxe para o Sporting de Braga em termos de modelo, comparando com Ricardo Sá Pinto. Nessa altura, é certo que o Braga também tinha um calendário mais ocupado por culpa das competições europeias, mas era uma equipa que no último terço procurava excessivamente o cruzamento, revelava alguma previsibilidade ofensiva, não arriscava tanto a sair deste traço. Com Ruben Amorim procura um jogo mais ligado do guarda-redes com participação direta e com responsabilidade de todos os jogadores no momento ofensivo", explica-nos Tomás da Cunha, salientando que a equipa do Minho "tem um plantel muito interessante para a dimensão portuguesa, bem próximo do patamar do Sporting".

O novo modelo tático é o grande ponto a assinalar para Fernando Marques, do Lateral Esquerdo, que sublinha a mudança do Braga de Sá Pinto que atuava em 4x3x3 para um novo modelo assente numa linha de três defesas. "O Ruben Amorim, a primeira coisa que fez, foi passar para 3x4x3 — ou um 5x2x3 a defender —, uma abordagem muito diferente por cá, original, e é importante salientar isso porque são poucas as equipas em Portugal que se estruturam com três centrais e só por aí é ligeiramente diferente do habitual e isso causa dificuldades nestes primeiros tempos. Talvez esse seja uma das grandes vantagens para este sucesso do Braga", diz.

No novo modelo, Fernando destaca "a entrada do Trincão a jogar nas costas do Paulinho" que "beneficiou toda a dinâmica coletiva e o próprio jogador". "O Ruben Amorim, como antigo jogador, naturalmente que trouxe um choque não só em termos táticos como em termos mentais. Ainda agora, esta semana, constantemente, nas conferências de imprensa, tem a capacidade de elogiar constantemente os jogadores, dizer que os seus jogadores são os melhores e isso é altamente benéfico, para o grupo, para a estrutura e tudo mais", sublinha.

No final, tudo mexido, temos uma equipa altamente comprometida num novo sistema, em choque com o que é clássico em Portugal, que envolve a participação de toda a equipa (do guarda-redes aos avançados) e que se realça pelo bom futebol, de paciência e inteligência, baseado na construção desde muito cedo e que encontra as soluções nas entrelinhas.

III - Rúben, discípulo de Jesus

Os elogios do rigor, a capacidade de interpretação de jogo e uma linha defensiva subida e coordenada colaram logo nos primeiros jogos Rúben Amorim a Jorge Jesus, treinador com quem o antigo médio trabalhou durante vários anos, primeiro no Belenenses e depois no Benfica. Mas foi numa longa entrevista à Tribuna do Expresso, que o jovem timoneiro falou das suas principais referências — e o nome de JJ não vem só.

"O facto de ter sido treinado por um treinador como o Jorge Jesus dá-te uma bagagem muito grande, taticamente falando, e dentro de campo usas isso a toda a hora. 'Fecha aqui, fecha ali', estás sempre a corrigir. [...] É engraçado, porque enquanto jogador tive muitos problemas com o Jesus. Mas tive como outros tiveram, porque o Jesus é um treinador que cansa. É muita intensidade e muita informação tática, todos os dias a carregar em cima do jogador, é muito perfeccionista. Trabalhei muitos anos com ele e é óbvio que o meu nível de exigência é um bocadinho parecido com o dele, porque foram muitos anos, percebes?", começou por explicar.

"Mas também trabalhei com outros em que o nível de informação não era nem de perto nem longe o mesmo, nem o estar sempre em cima do jogador, e têm muito sucesso, como o [Leonardo] Jardim, por exemplo. É um treinador que conduz o grupo de uma forma completamente diferente da do Jesus e tem muito sucesso, por isso as minhas ideias são assim porque este é o meu feitio. Mas não serei um treinador como Jorge Jesus, porque temos feitios diferentes, apesar de eu ter sido muito influenciado pelos anos em que estive com ele. Acho que serei duro, no sentido de ser chato, porque não consigo esconder as coisas, mas não serei como o mister Jorge Jesus", completou.

Para Bruno Simão, o amigo de infância, a influência de JJ é inegável. O lateral esquerdo diz que o técnico foi "dos melhores professores" que Amorim teve.

"Eu não tenho esse conhecimento porque nunca fui treinado pelo Jorge Jesus, mas tenho vários colegas, amigos de profissão, que foram treinados pelo Jesus e a opinião é unânime: toda a gente, quem joga e quem não joga, sabe o que tem de fazer em campo e essa é uma das grandes chaves do Amorim e da personalidade do Braga de hoje em dia, aquilo que têm que fazer. O Amorim tem isto, tem o rigor no campo, nos pormenores, a montar uma equipa; [depois há] a parte humana, [sendo] que muitas vezes os treinadores têm uma coisa ou outra, [mas] o Ruben tem as duas coisas", explica.

Para Tomás da Cunha não há dúvidas de que a convivência com "um nome incontornável ao nível do treino" como Jorge Jesus deu muita bagagem a Amorim para o início do desafio como treinador, em consonância com Fernando Marques, que destaca a linha defensiva — "joga muito alta e isso exige coordenação" — como herança do atual técnico do Flamengo. Contudo, ao mesmo tempo, acredita que o sistema de três centrais poderá vir do futebol europeu, por influências como as de Antonio Conte ou Pep Guardiola, acrescentando que no momento ofensivo a equipa se assemelha ao Braga do ano passado, treinado por Abel Ferreira, melhorado com Trincão a jogar entrelinhas, da ala para o meio.

No entanto, e por muito que possamos especular entre a novela Rúben Amorim e Jorge Jesus, o próprio Rúben assume que a sua grande referência é Mourinho. "Há treinadores que têm uma forma de ver o jogo que eu gosto, como o Guardiola, mas, para mim, a referência é o Mourinho, porque vejo a bola de forma mais parecida com o mister Mourinho, ou seja, analisa muito bem os adversários e mete a sua equipa, não só com um determinado modelo de jogo mas a pensar muito como é que se adapta para ganhar. E eu sou um bocado assim", confessou Amorim na entrevista à Tribuna.

IV - Ao décimo jogo, a primeira derrota

Há uma coisa importante a sublinhar no sucesso dos primeiros nove encontros de Rúben Amorim: "o Braga não foi superior em todos os jogos, não foi superior no Dragão, nem sequer na Luz, mas acabou por conseguir a vitória. É uma equipa que ainda não teve de lidar com a adversidade, e esse será um momento importante para percebermos que soluções Ruben Amorim pode dar à equipa. Para já, o primeiro impacto é excecional, em termos de ideias, mas a equipa não poderá fazer um caminho completo em linha reta, vai ter alguns acidentes de percurso e aí também será preciso mais treinador para o Braga ter a tal consistência", salienta Tomás da Cunha.

A primeira adversidade surgiu na semana passada de forma cruel, ao décimo jogo, na estreia europeia de Rúben Amorim. Depois de 60 minutos do melhor futebol do Braga, em que a equipa portuguesa conseguiu fazer dois golos em Glasgow, no jogo diante do Rangers, a equipa perdeu-se na última meia hora do desafio, tendo sentido dificuldades em dominar a linha defensiva subida e em controlar a profundidade com que os pupilos de Gerrard atacavam o último terço do terreno. Problemas posicionais e um forte acordar do Rangers, embalado pelo treinador e pelo estádio, levaram os escoceses a dar a volta ao marcador.

No entanto, Tomás da Cunha rejeita que esse seja um motivo para alarmismos, tendo sublinhado no comentário ao jogo que, apesar de ter sido "evidente que houve várias falhas no controlo da profundidade (maior dificuldade com o bloco subido, naturalmente)", "a crença nas ideias e a melhoria notável na qualidade ofensiva (em comparação com Sá Pinto) continuam a valorizar Rúben Amorim e este Sporting de Braga".

Este fim de semana, a resposta foi dada perante o Vitória de Setúbal, com uma vitória caseira por 3-1 antes de receberem o Rangers na Pedreira e de tentarem emendar o resultado da primeira-mão com crença no jogo desenvolvido por Rúben Amorim e que esta equipa abraçou. Estatisticamente, perdeu-se um registo de invencibilidade, mas na essência ganhou-se uma ideologia de jogo, uma forma de jogar nova, diferente do que tem sido feito em Portugal. E isso, no futebol de hoje, vale muito mais do que três pontos.

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