A passagem de JJ pelo Flamengo foi tão marcante que ainda vivemos o impacto da sua saída inesperada. O Flamengo, multi-campeão em 2019 e favorito a tudo em 2020, vem fracassando seguidamente nesta época. A última eliminação, para o Racing pela Libertadores, foi especialmente dolorosa e, apesar de erros do novo treinador Rogério Ceni nas substituições durante o jogo, a origem desta má fase data da saída do treinador português.
Jorge Jesus foi brilhante no Flamengo. Teve tempo para treinar, durante a pausa da Copa América, e implementou um estilo de futebol muito agressivo e dominador. Passou o trator por cima de rivais nacionais e continentais e conseguiu equilibrar o jogo contra o Liverpool, no Mundial. Entretanto, a gestão rubro-negra falhou em utilizar este sucesso para criar uma cultura vencedora no clube.
Relatos de profissionais no clube apontam a falta de legado do trabalho do português. Talvez por não imaginar que Jesus fosse sair repentinamente, logo após ter renovado contrato, a diretoria do Flamengo não preparou a sua sucessão. Não ficou ninguém da comissão do treinador e nenhum dos profissionais fixos do clube tinha contacto com os planos de treino e jogo do Mister. Ou seja, ninguém aprendeu com o sucesso obtido. Quando saiu Jesus, tudo começou novamente do 0.
E essa é a primeira lição que o Palmeiras precisa de aprender. Abel traz a boa formação dos treinadores portugueses e o seu trabalho precisa de ser acompanhado por profissionais habituais do clube, de forma a potencializar o desenvolvimento da equipa técnica do profissional e da formação. Esta semana já houve boatos de proposta milionária do Catar para o treinador português, prontamente negada, mas é óbvio que um bom trabalho no Brasil abrirá portas para outros trabalhos em mercados que pagam melhor.
Jorge Jesus voltou a Portugal na primeira oportunidade que teve, em parte pela pandemia, mas muito, também, pelo apelo financeiro do investimento do Benfica. Abel pode ter objetivos maiores no Brasil ou ver o país como um trampolim para voos maiores em solo Europeu. O que não pode acontecer é sua saída, mesmo que ainda longínqua, deixar um vácuo no planeamento de futebol do clube.
Outra grande falha do Flamengo foi a falta, propriamente dita, deste planeamento de futebol. No livro “A Bola não entra por acaso”, que explica o sucesso do Barcelona de Guardiola, logo no início, fica claro que o clube blaugrana tinha uma visão de como queria jogar futebol. Essa visão influencia o modelo de jogo do profissional e a formação dos jovens. Por mais variações que possam acontecer, ao longo do tempo e das contingências de cada época, o Barcelona tem princípios e valores fortes o suficiente para sobrepor mudanças de jogadores e treinadores.
O Flamengo, ao perder Jorge Jesus e seu estilo de jogo directo e de pressão, optou por um treinador com cultura praticamente oposta, no que diz respeito a como atacar. E Domenéc Torrent, apesar de dizer que não tentaria impor seu estilo inicialmente, não demorou a mudar a forma de jogar do clube. Essa falta de continuidade cria problemas como essas falhas defensivas constantes que vemos no Flamengo. Não há a compreensão rápida da proposta e, com o sucesso obtido com outro estilo, é natural que em campo ainda se busque movimentos que não fazem parte da proposta do novo treinador. Rogério Ceni tenta corrigir isso, mas não há tempo para treinar, no calendário apertado atual, e isso leva tempo.
Para piorar, o estilo de treinos do espanhol e do português são bastante diferentes. E, hoje, nota-se uma condição física inferior em relação ao ano passado. Ainda, a nova comissão avalia que os treinos eram feitos em baixa intensidade, durante a passagem do espanhol, e isso reflete na intensidade dos jogos.
Ou seja, a saída de JJ deixou um vazio no modelo de treinos e no modelo tático do clube. Treinadores vão e vêm e o Flamengo, ou o Palmeiras, sempre serão maiores do que eles. Mas é preciso haver uma visão clara do que querem ser. Para, assim, ter uma estrutura que crie, cultive e fortaleça a cultura futebolística dos clubes, para que o bom trabalho de treinadores como Abel e Jesus sejam catalisadores de bons ventos por muito tempo.
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