Há quase três anos, a liga espanhola de futebol contratou Joris Evers para coordenar toda a comunicação da La Liga. O que é que isto tem de especial? Ora, durante cinco anos, Evers foi vice-presidente e responsável pela comunicação da Netflix na Europa, Médio Oriente e África. “De repente, parece estranho, mas o negócio é exatamente o mesmo. O futebol também vende conteúdos”, explica Daniel Sá, especialista em marketing desportivo e diretor executivo do IPAM ao SAPO24.
É este o fenómeno que temos visto chegar a Portugal, de maneira “um pouco tímida”, mas que já desperta atenção e que, na opinião de Daniel Sá se vai acentuar: “Nos últimos anos entrou gente nova, familiarizada e formada com as ferramentas de comunicação e marketing”. Assim, vaticina: “Acredito que daqui a dois anos estaremos num nível de maturidade muito interessante”.
O diretor executivo do IPAM considera que há um campeonato paralelo ao futebol, uma disputa nas redes sociais – “e ainda bem que há”. O futebol, "como qualquer outro negócio, tem de saber despertar a atenção das pessoas senão corre-se o risco de as perder”. E esse negócio vive de três tipos de receitas.
Primeiro, há os direitos de transmissão televisiva, “que, para já, a pandemia em nada afetou”, diz. Depois, a venda de bilhetes, fonte de receita esta que “a Covid-19 destruiu completamente” por não se realizarem jogos com adeptos no estádio, por razões de saúde pública.
E, por fim, o futebol lucra com o apoio de patrocinadores “que se associam ao futebol quanto mais visibilidade o clube tiver”. É neste enquadramento que se explica a intensificação deste campeonato paralelo nas redes sociais. “Como os clubes perderam a capacidade de interação cara a cara com o adepto, nos últimos seis meses, aumentaram o esforço na interação à distância - e as redes sociais são, à data, a melhor forma de o fazer”, explica.
Vitória apresenta D. Ricardo, o “Mustang”
As confirmações de jogadores têm sido anunciadas nas redes sociais com criatividade e originalidade e constituem um dos pontos altos da estratégia de marketing dos clubes. O internacional Ricardo Quaresma, que começou no Sporting Clube de Portugal, quer terminar a carreira no Vitória de Guimarães e a sua chegada foi divulgada num vídeo em que o jogador de 36 anos está confortavelmente no seu castelo quando o mordomo lhe traz o telefone. Devem estar a ligar do Estádio D. Afonso Henriques.
A decisão está tomada: vai buscar a sua nova camisola branca e preta, do Vitória Sport Clube. Já com o número 10 às costas, recusa sair do castelo num carro da marca da sua alcunha, Mustang. Prefere uma saída mais digna de realeza: montado num cavalo branco, ao som de violinos.
Nas redes sociais, o clube vimaranense deixou a mensagem “Long Live the King: A Dinastia Quaresma começa agora”. No vídeo, há também uma piscadela de olho a Harry Potter, quando o "the marauder's map" [mapa do salteador, em português] aparece, não fosse o nome do feiticeiro mais famoso do mundo uma alcunha antiga, nos tempos em que Quaresma espalhava magia com a camisola do FC Porto. O vídeo já conta com mais de três milhões e meio de visualizações e foi elogiado pela imprensa internacional.
Para além dos vídeos de apresentação, o clube minhoto tem partilhado imagens com informações dos próximos jogos, inspirados em capas de álbuns de música e cassetes.
Braga levantou voo nas redes sociais e Gaitán foi o piloto
O sempre intenso dérbi minhoto que coloca frente a frente Braga e Guimarães joga-se a 25 de outubro, mas o “confronto” já começou nas redes sociais. A oficialização de Nico Gaitán como reforço do Sporting de Braga também teve direito a um vídeo elaborado – desta vez pelos ares.
Daniel Sá diz que estes dois vídeos, do Vitória de Guimarães e do Braga, têm o nível de “produções cinematográficas” pela forma profissional com que foram feitos.
“O que o mundo do futebol percebeu nos últimos anos”, explica o especialista, “foi que tem muito mais para vender do que os 90 minutos de jogo. A atenção dos clubes, nos últimos anos, do ponto de vista de marketing era para os 90 minutos. De facto, o futebol é muito mais rico e tem muito mais conteúdo para além disso”.
Gonçalo Azevedo Ferreira é o diretor do Next, a plataforma digital do SC Braga, criada em julho de 2019, quando o clube renovou o site e criou a sua loja digital. O responsável diz ao SAPO24 que algo que distingue o Braga de outros clubes é a “completa fusão entre comunicação digital e marketing” e o facto de todas essas tarefas serem feitas internamente.
Foi com vídeo de apresentação do ex- jogador do Benfica que a equipa de comunicação do SC Braga se pôs à prova. Com Aeródromo Municipal de Braga como fundo, o vídeo ficou gravado num só dia e com apenas três pessoas atrás das câmaras.
É uma chegada em grande. Vemos um homem misterioso a chegar de mota e a admirar os retratos de dirigentes do aeródromo. “Pedimos autorização e achávamos que teria piada incluir também o retrato a preto e branco de Gaitán numa das molduras”, conta Gonçalo Azevedo Ferreira – e assim foi.
Neste vídeo, que tem mais de meio milhão de visualizações entre Facebook, Instagram e Twitter, a ilusão é o segredo. “Os jogadores de futebol não podem guiar motas, por isso quem vemos não é o Gaitán. É um amigo meu, que apesar de magro é um pouco mais gordo que o Gaitán”, revela Gonçalo em tom de brincadeira.
Mas no vídeo vê-se Nico a pilotar um avião. Também é um duplo? “É mesmo o Gaitán”, assegura Gonçalo. “Ele não fazia ideia de que ia voar. Nem o presidente do clube estava a querer deixar, mas [garantimos que] tudo ia correr bem”. E correu de tal forma bem que o jogador de futebol encantou como ator: “O Gaitán foi fantástico. No avião, tem uma frase - ‘Olá, guerreiros’. Fala Nico Gaitán. Estão prontos para a nova época? Eu estou. Bora!’ e disse-a à primeira. Aliás, com ele gravámos todas as cenas à primeira”.
Gonçalo, que responde pela direção criativa deste vídeo, tinha pensado em gravar numa base aérea militar, mas a decisão acabou ser por realizar as filmagens no aeródromo. “Os funcionários do aeródromo ficaram fascinados e isso é ótimo. O Braga quer colaborar com as pessoas da cidade. As pessoas sentem muito orgulho por ajudar”.
Aliás, no dia de gravações, o piloto do avião fazia 53 anos de brevê e celebraram com muitas fotos com o novo reforço do clube bracarense.
“Ao contrário do que se pensa, não é preciso muita coisa para criar algo bom”. O responsável do Next admite que é preciso bom material e bons profissionais, mas, acima de tudo, é preciso encontrar boas soluções e bons parceiros. Dá como exemplo o custo da produção do vídeo de apresentação: “quatro camisolas autografadas pelo Gaitán”. Foi tudo o que o dono do aeródromo quis, para dar aos seus funcionários.
“Ser criativo dá trabalho, mas compensa”, sublinha Gonçalo. Algo que se materializa, afirma, no facto de o SC Braga ter 607 mil seguidores nas redes sociais, um número mais que três vezes superior ao dos habitantes da cidade.
Os adeptos do Braga gostaram, mas, para Gonçalo Azevedo Ferreira, o mais espantoso foi o facto de pessoas de outros clubes reconhecerem a qualidade do vídeo. “No Twitter falavam muito bem do vídeo. Há um particular que diz ‘Olhem para o vosso clube como a equipa de marketing olha para o Gaitán”. Segundo o mesmo responsável, até os responsáveis pelo campeonato português de futebol ligaram ao SC Braga para elogiar o vídeo.
O vídeo do Paços de Ferreira é, na opinião do diretor do Next, outro bom exemplo de marketing digital no futebol. Um conteúdo, afirma, com muito trabalho, adereços e esforço por trás. A peça de comunicação do clube pacense tem como protagonista a sua mascote Castor, que vai ilustrando todo o calendário de jogos com uma ação em tom de brincadeira. Por exemplo, na 6ª e 23ª jornadas o Paços de Ferreira joga com o FC Porto logo, o Castor aparece a comer uma francesinha.
A receita para marcar golos no digital
A criatividade na apresentação de jogadores nos clubes não é de hoje, nem tão pouco exclusiva do futebol. “Já antes da pandemia víamos este fenómeno até em clubes muito pequenos, como o Varzim Sport Club, o Rio Ave ou até da segunda divisão do campeonato a criar rotina de publicação de vídeos, de mostrar os bastidores de jogos”, recorda Daniel Sá.
Mas, com a pandemia, que retirou a possibilidade de interação física com os adeptos, as soluções de marketing digital ganharam um valor redobrado. “Os clubes perceberam rapidamente que, quer para manter os adeptos envolvidos, quer para ter visibilidade junto dos patrocinadores, teriam de se dedicar à comunicação digital”, diz Daniel Sá, relembrando que o sucesso de bons conteúdos faz com que o acompanhamento em redes sociais aumente.
A receita é simples: interações levam a mais seguidores e mais visibilidade junto dos patrocinadores leva a maior retorno para as marcas que apoiam o futebol - o que por sua vez valoriza o investimento realizado nos clubes.
É neste contexto que se multiplicam as apostas em plataformas digitais por parte dos clubes. Em julho de 2019 foram lançadas a FC Porto TV e a plataforma Next, do SC Braga, onde os clubes transmitem alguns jogos e publicam conteúdos das suas modalidades e escalões.
No início de 2020, nasceu a Benfica Play, com a qual também se tornou possível ver os bastidores do clube, principalmente da equipa principal de futebol. Mais recentemente, o vídeo de apresentação de Darwin Núñez também deu que falar. Nesta peça de comunicação, o SL Benfica confronta a Teoria de Darwin com a prática: comentários em vídeo sobre a performance do jogador seguidos de lances vitoriosos do jogador de 21 anos.
Mais a norte, na passada quarta-feira, 9 de setembro, Evanilson foi apresentado com as cores do FC Porto. É num vídeo ritmado que o jogador brasileiro entra no estádio do Dragão. O clube portista tem apostado numa comunicação jovem, como os vídeos curtos no Instagram (Reels), em que usam músicas dos tops para mostrar os seus jogadores com os novos equipamentos, o regresso aos treinos ou jogadas marcantes no relvado.
O vídeo curto mais popular, com 140 mil visualizações, mostra o mister Sérgio Conceição a dançar a pedido dos jogadores quando se tornaram campeões. “Vai, Mister”, pode ler-se.
Dinheiro em comunicação é dinheiro bem gasto
O dinheiro gasto na produção de conteúdos e na comunicação dos clubes, na opinião de Daniel Sá, “é muito bem alocado”, acrescentando que Portugal ainda está com alguns anos de atraso nesta matéria quando comparado com clubes estrangeiros. “Quando olhamos para as principais ligas europeias, para clubes ingleses, espanhóis, ingleses, entre outros, vemos equipas muito profissionais há bastante tempo (com outros meios, naturalmente)”, explica.
“Inclusivamente, essas equipas têm o objetivo de atingir outros mercados porque são competições vistas em todo o mundo. E como uma equipa hoje em dia tem jogadores de muitas nacionalidades diferentes, tenta sempre chegar a esses países que acabam por ser adeptos”.
Dá o exemplo de pessoas que hoje são um pouco do clube italiano Juventus "apenas" porque Cristiano Ronaldo joga lá. “Isto é replicável para muitos clubes, por mais pequenos que sejam”.
Pesquisa e testemunhos por Magda Cruz.
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