Não nos vamos enganar, ok? Até Jorge Jesus ter chegado ao Flamengo, poucos eram aqueles que acompanhavam atentamente o futebol que se joga do outro lado do Atlântico. Com exceção de vídeos no YouTube com os melhores momentos de possíveis reforços dos clubes portugueses (quem nunca...?), as visualizações de jogos de futebol sul-americano estavam reduzidas aos curiosos e viciados puros no desporto-rei, bem como aos eventuais olheiros de clubes de futebol e um ou outro adepto ocasional.

Mas tudo isso mudou com a chegada de JJ ao Mengão. E desde aí, o Flamengo mudou. “Só Jesus salva”, referiu uma recente reportagem do jornal O Globo, numa alusão ao estilo ofensivo implementado pelo treinador português (do qual muito beneficiaram Gabriel Barbosa e Bruno Henrique, principais referências ofensivas do Fla) mas, também, à solidez defensiva que, desde que Jesus se sentou no banco, o Flamengo passou a ter.

E foi com o ex-treinador do Benfica e Sporting, que o Flamengo voltou, 38 anos depois, à final da Copa Libertadores. Amado pelos adeptos do Mengão (vai até ser condecorado como cidadão honorário do Rio de Janeiro), o técnico português chegava a este fim de semana pronto a entrar na história, visto que poderia vencer a Libertadores e o Brasileirão no mesmo fim de semana.

Do outro lado, contudo, estava o River Plate, histórica equipa argentina, campeã em título da Libertadores e um dos mais temíveis conjuntos da América do Sul, comandado pelo ex-jogador e internacional argentino Marcelo Gallardo.

Desde que Gallardo chegou ao comando técnico dos Milionarios, em 2014, o River Plate já conquistou duas Copas Libertadores, uma Copa Sudamericana (2.ª competição de clubes mais importante da América do Sul), três Recopas Sudamericanas (jogo entre os vencedores da Libertadores e da Sudamericana) e uma Taça Suruga Bank, competição que coloca frente a frente o vencedor da J-League Cup (equivalente à Taça da Liga em Portugal) e o da Sudamericana – sim, esta última competição existe, vá-se lá saber porquê.

Gallardo, que tem sido apontado ao Barcelona, conta na suas fileiras com dois jogadores bem conhecidos do futebol português: Enzo Pérez, ex-Benfica, que fez parte do 11 inicial do River, e Juan Quintero, ex-FC Porto, que começou a partida no banco dos suplentes. Do lado do Flamengo, o titular Gabigol (passou sem grande sucesso pelo Benfica) e o suplente Diego (jogou dois anos no FC Porto) eram os “portugueses” de serviço.

Os onzes de ambos os conjuntos, de resto, foram anunciados no dia de ontem por ambos os treinadores, sendo que o elevado número de internacionais sul-americanos que constam de cada um dos conjuntos mostram que estas são equipas que imporiam respeito à grande maioria dos clubes europeus.

Um exemplo? Dos 11 jogadores escalados por Gallardo para começar a partida, 9 são internacionais argentinos e um é internacional colombiano, sendo que do lado do Flamengo, Jesus tem também pouco a “queixar-se”: oito internacionais brasileiros e um internacional uruguaio foram apresentados de início por JJ, sobrando apenas Pablo Marí (Espanha) e Gerson (Brasil) como jogadores que ainda não envergaram as camisolas das seleções dos seus países (o que não deixa de ser irónico no caso do brasileiro, tendo em conta a temporada que está a fazer e a sua importância na equipa do Mengão).

Hora então para olhar para uma partida que, de resto, não começou sem as atuações dos cantores Fito Páez, Anitta, Tini, Sebastian Yatra, Turf e Gabriel, O Pensador, bem ao estilo Super Bowl, ainda antes da apresentação da Taça mais desejada (que entrou no relvado ladeada por stormtroopers da saga Star Wars) e da entrada das equipas em campo.

Talvez inspirado pelo Cristo Redentor que ontem equipou de rubro-negro no Rio de Janeiro, o primeiro remate do jogo pertenceu ao Flamengo que, por Bruno Henrique, lançou aquele que seria o primeiro aviso à baliza de Armani. Contudo, esse acabaria por ser o único remate do Mengão na primeira parte e, ainda antes do primeiro quarto de hora, o River chegaria ao primeiro golo da partida.

Rafael Santos Borré, internacional colombiano – Carlos Queiroz concedeu-lhe a primeira internacionalização no passado mês de setembro –, respondeu da melhor forma a um cruzamento da direita de Nacho Fernández já dentro da área e rematou para o fundo da baliza de Diego Alves. Estava feito o primeiro do jogo, no primeiro remate do River Plate à baliza. Os argentinos foram eficazes e assim se mostraram durante quase todo o jogo.

A primeira parte foi marcada por uma pressão intensa e agressiva do River Plate (a equipa que faz mais faltas e acumular mais cartões amarelos na competição), que não deixava o Flamengo impor o seu jogo e asfixiava as tentativas dos brasileiros iniciarem o seu carrossel ofensivo. Enquanto isso, no Twitter, o comentador desportivo Blessing Lumueno escrevia que os jogadores do Flamengo deveriam “utilizar o ímpeto do River” contra os próprios argentinos, fazendo-os “correr” para depois “variar o jogo e ter a calma suficiente para fazer a diferença” em jogadas de um-para-um. “Num jogo físico, contra uma equipa que vai a todas, não há [outra] hipótese”, dizia ainda o comentador do Canal 11.

Tal como um defesa que faz um corte de carrinho a um avançado que se preparava para empurrar a bola para a baliza, Blessing tirou-me “o pão da boca” (ou, se quiserem, as palavras à crónica): essa era a análise possível a um jogo onde a equipa de Jesus não conseguia construir e onde a equipa do River demonstrou uma agressividade incomparavelmente superior ao conjunto brasileiro (18 faltas cometidas contra seis do Mengão).

O jogo foi para o intervalo com os Milionarios na frente, não obstante as estatísticas de posse de bola (59% contra 41%) e precisão de passe (74% contra 59%) serem claramente favoráveis ao Flamengo.

Na segunda metade, assistiu-se a mais do mesmo, não obstante a pressão do River Plate ter diminuído um pouco, dando mais espaço aos comandados de Jorge Jesus. Tal ficou evidente à passagem do minuto 56, quando o Flamengo perde aquela que foi a sua melhor oportunidade no jogo até à altura. Na verdade, não foi apenas uma oportunidade – foram três, todas na sequência da mesma arrancada e cruzamento de Bruno Henrique pela esquerda.

Primeiro, é De Arrascaeta que falha a emenda para a baliza (já dentro da pequena área) na sequência do cruzamento. Depois, é Gabriel Barbosa que, na sequência de ressaltos, remata contra um jogador do River. Por último, é Everton Ribeiro que remata para defesa de Armani. Tudo isto dentro da área do River, que pareceu pela primeira vez estar em verdadeiro “sofrimento” numa ofensiva atacante do Mengão.

Depois, aos 65 minutos, o azar bateu à porta de Jorge Jesus. Gerson, talvez o principal motor deste Flamengo de JJ, lesionou-se e teve de ceder o seu lugar a Diego (ele que estava a ser o melhor do Mengão, a olho nu e a “olho estatístico”).

O tempo ia passando até que recuámos 20 anos no tempo. Isso mesmo. De repente, voltámos a Camp Nou e a 1999, quando Bayern Munique e Manchester United disputavam a final da Liga dos Campeões. Para os que não se recordam, os alemães venciam o jogo até perto do minuto 90, fruto de um golo de Mario Basler logo aos seis minutos, quando Teddy Sheringham e Solskjaer (atual treinador dos Red Devils) marcaram aos 91 e 93 minutos, na sequência de dois cantos, e originaram uma das maiores reviravoltas e "golpes de teatro" da história do futebol.

Já estão a ver onde isto vai dar, não estão?

Vamos então ao minuto 89. Jogada individual de Bruno Henrique, que desmarca De Arrascaeta e o uruguaio, em queda, cruza para um Gabriel Barbosa sozinho ao segundo poste. Sem guarda-redes, Gabigol empurrou para a baliza e começou a cheirar a prolongamento. Certo? Nada mais errado.

Talvez imbuído pelo espírito Red Devil de 1999 (ou o vermelho não fizesse parte dos equipamentos das duas equipas), ainda que de Barcelona a Lima distem 10 mil quilómetros (e 20 anos, já agora), Gabigol consumou a reviravolta. Uma desatenção dos até então impecáveis centrais do River Plate foi o suficiente para provovar a explosão de alegria no relvado, nas bancadas e, aposto, em todo o Rio de Janeiro (e em grande parte do Brasil).

O jargão "o futebol é isto" nasceu de minutos como estes.

Depois da vitória na Libertadores, o Fla pode entrar na história do futebol brasileiro e vencer o campeonato brasileiro e a Libertadores no mesmo ano, feito apenas alcançado pelo Santos de Pelé na década de 60. Tudo graças a Gabigol e, claro está, a Jorge Jesus, autêntico xamã da nação rubro-negra, que já conquistou um lugar no panteão do Flamengo e nos corações de todos os adeptos do Mengão.

Bitaites e postas de pescada

O que é que é isso, ó meus?

Na jogada do primeiro golo da partida, apontado por Santos Borré, há vários jogadores do Flamengo que não ficam bem na fotografia. O primeiro é Filipe Luís, cuja incapacidade de “matar” a jogada na sua fase inicial colocou a defesa rubro-negra em perigo. Depois, são Gerson e Willian Arão que, na sequência do cruzamento de Nacho Fernández, deixam a bola passar entre si, numa clara desconcentração em modo “vais-lá-tu-ou-vou-lá-eu?” que só serviu para deixar a bola rolar na direção do internacional colombiano que, sem piedade, abriu o marcador para o River Plate.

Gabigol, a vantagem de ter duas pernas

Dois golos em três minutos vão coroar Gabriel Barbosa como rei do Rio de Janeiro nos próximos anos. Esqueçam a expulsão em cima do apito final, Gabigol virou a final para o Mengão, ele que pareceu estar meio adormecido durante quase toda a partida. Não estava, estava bem acordado, e os seus golos também acordaram os adeptos do gigante clube brasileiro.

Nem com dois pulmões chegava a essa bola

Armani esteve impecável durante todo o jogo mas nos golos do Flamengo pouco ou nada podia fazer. No primeiro, a baliza estava praticamente aberta e, por mais que se esticasse, nunca lá chegaria. No segundo, o remate de Gabigol não deu qualquer hipótese ao internacional argentino. Dois golos que deram a volta ao jogo, dois golos em que "nem com dois pulmões" chegava à bola.

Fica na retina o cheiro de bom futebol

Este parágrafo costuma ser destinado a alguma jogada durante o jogo, a algum momento em que um jogador mostra algo que é a razão pela qual todos nós amamos este jogo. Contudo, hoje, vai todo para Jorge Fernando Pinheiro de Jesus, "o mister", o "cristo" do Mengão (blasfémias à parte), o homem que acordou esse gigante adormecido que joga de rubro-negro e que já está no coração de todos os cariocas.

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