O foco é o cliente. Se o cliente quer (e o regulador deixa) eles estão lá para dar resposta. E ao fazer isso estão a forçar os bancos tradicionais a surfar a onda das fintech, isto é, dos negócios financeiros suportados em novas tecnologias. Cada vez mais comuns — e populares —, estas novas empresas primam pela rapidez, pela comodidade (o seu gestor de conta está tão longe quanto o seu telemóvel) e sobretudo por cobrarem menos taxas. Como é que eles conseguem isso? Não têm de suportar uma estrutura de custos tão grande (balcões abertos ao público, funcionários...) e, assim sendo, podem cobrar menos pelos serviços. E que serviços são esses? Aqueles em que o dinheiro voa sem trocos nem notas.

Já ouviu falar da Revolut? A plataforma online que permite fazer pagamentos e levantar dinheiro no mundo inteiro a taxas reduzidas tornou-se tão popular que em abril, por altura da entrega do IRS, as Finanças tiveram de vir esclarecer se os contribuintes eram ou não obrigados a declarar as contas que tinham nesta aplicação. A empresa foi criada há quatro anos, hoje já opera em 35 países, e o seu fundador, Nikolay Storonsky, esteve esta quinta-feira na Web Summit a partilhar um painel com Anne Boden, CEO do britânico Starling Bank, e Zach Perret, fundador e CEO do Plaid, empresa que desenvolve a estrutura que permite às aplicações "ligarem-se" às contas de vários clientes. O painel moderado por Felix Salmon, da Axios, tinha como ponto de partida uma provocação: "O dinheiro está morto, o que segue?" — mas foi o próprio a admitir que a premissa não convence.

Zach Perret créditos: Harry Murphy/Web Summit via Sportsfile

Temos um mundo sem trocos nem notas ao virar da esquina? Ainda não, mas para lá caminhamos, aponta Zach Perret. "O dinheiro não está morto, é óbvio, as pessoas ainda andam com dinheiro no bolso. Mas temos assistido a uma enorme adesão às fintech e cada vez mais está no passado aquele conceito de que todas as tuas relações financeiras estão associadas a um único banco ou que desces a rua para falar com um gestor de conta num balcão".

Diz Zach que "as pessoas querem poder interagir com o seu dinheiro sem ter de falar com um humano, atender telefones ou enviar documentos a alguém. Acho que estamos no início da transformação digital no setor financeiro. Estamos a ver vários consumidores a usar produtos de fintech, mas nem todos se convertem totalmente a este tipo de bancos ou serviços. No entanto, suspeito que vamos ver isso a acontecer dentro de alguns anos".

Apesar destas novas empresas não permitirem fazer tudo — não é como se pudesse fazer através delas um crédito à habitação, por exemplo —, o que é que leva os clientes a optarem por estas soluções. "Estão insatisfeitos com os seus bancos?", questiona Felix. Anne tem outra leitura: "os clientes têm cada vez mais ferramentas ao seu dispor para dar resposta a diferentes necessidades no seu dia-a-dia e os bancos tradicionais não estão a conseguir acompanhar a mudança".

Segundo a CEO do Starling Bank, um novo banco (ou "neobanco") que não tem balcões físicos, os players tradicionais estão "desde a crise financeira [de 2008] focados nos seus próprios problemas. Eu sei, eu trabalhei lá, e cheguei à conclusão de que o antigo sistema estava quebrado. Portanto, a melhor forma de dar aos clientes o que eles querem é criar um banco novo".

Quando Anne fala num sistema quebrado refere-se a uma estrutura onde o tamanho e a burocracia são os grandes travões da inovação.

"Os grandes bancos vão copiar tudo o que nós [fintech] fizermos nos próximos dois anos, portanto vão andar sempre dois anos atrás de nós. Além disso, vão copiar-nos em cima da estrutura existente, portanto não é uma batalha de inovação, é uma batalha de custos. Eles vão acabar por chegar à conclusão de que têm de se focar em determinadas linhas de negócio, terão de fazer escolhas, e aí sim teremos uma total reconfiguração do setor bancário", diz Anne.

A título de exemplo, Nick conta que num negócio como o seu, que opera exclusivamente online e onde as máquinas são capazes de tomar parte das decisões e conduzir processos autonomamente, "com nove milhões de clientes temos apenas 500 pessoas dedicadas ao apoio ao cliente. Se escalarmos isto para um banco tradicional, provavelmente teremos 5000 funcionários a fazer esse serviço".

"Quando entras num banco e falas com um gestor isso tem um custo, o custo daquele funcionário e da papelada que está por trás. A razão pela qual as fintech podem ser lucrativas a longo prazo é porque estão a operar numa indústria que tem poucos custos: só tens de ter capital e software e colocá-los a trabalhar em conjunto para servir o cliente", resume Zach.

Anne Boden créditos: Harry Murphy/Web Summit via Sportsfile

Anne não vê com bons olhos sequer a possibilidade de as fintech que já funcionam no mercado serem adquiridas por bancos, por uma questão de agilidade. "Primeiro dizem-te para usar o sistema deles de recursos humanos, depois para usar o email deles, é uma estrada escorregadia, e dentro de alguns anos a inovação deixou de acontecer porque a organização não consegue avançar. A questão com as fintech e os novos bancos é que se movem muito depressa, nós instalamos num mês aquilo que um banco tradicional leva anos a fazer".

E se isto parece um exagero, Nikolay está cá para garantir que não: "Quando eu trabalhava no Credit Suisse lancei um novo produto e precisámos de assinaturas de 14 comités. Levou-me dois anos".

"É impossível fazer alguma coisa num banco tradicional, primeiro há a questão do processo, que está suportado em ferramentas que não são as ideais; depois há a questão das pessoas, que também fazem parte do processo, e que podem não ter a mentalidade certa ou os conhecimentos necessários para criar produtos; e depois há o processo de aprovação, que passa por vários comités", explica o CEO da Revolut.

E quando os mais críticos levantam a bandeira da regulação — "quando forem maiores vão ser mais regulados e vão ser obrigados a fazer as coisas como os bancos tradicionais fazem" — Anne descarta a limitação: "Nós no Starling Bank temos de cumprir exatamente as mesmas regulações que os grandes bancos, cumprimos os mesmos standards de aprovação. O que é diferente são os nossos processos, que são desenhados para cumprir os nossos objetivos, e temos pessoas realmente apaixonadas por servir bem. E isso faz uma grande diferença".

"Antigamente a tecnologia num banco era algo que acontecia algures nos bastidores e que dava suporte; agora nós colocamos a tecnologia onde ela deve estar e garantimos que temos a melhor tecnologia para dar resposta aos problemas das pessoas. A diferença das empresas de fintech é que são lideradas pela engenharia, pelo software", explica Anne.

"O problema é que durante muitos anos, por causa da regulação, era muito difícil para pequenos negócios entrarem no setor. A regulação estava a proteger os consumidores, mas estava também a sustentar preços elevados no mercado e práticas que não eram justas para os clientes", diz Anne, elogiando o papel dos reguladores britânicos, que adotaram nos últimos anos medidas para permitir a entrada de novos players e, assim, aumentar a concorrência.

Zach corrobora: "Se há mais soluções disponíveis isso resulta em maior competição e o consumidor ganha porque os preços baixam e a qualidade da oferta aumenta".

Nikolay, cuja empresa opera em 35 países (e que também destaca o Reino Unido como o melhor mercado para estes novos bancos desenvolverem o seu negócio), confirma que há uma abertura maior por parte dos reguladores a estes negócios: "Os reguladores agora têm duas preocupações, a redução de risco e a concorrência, o que na realidade é bom para as fintech".

Yoni Assia créditos: Harry Murphy/Web Summit via Sportsfile

Estas novas empresas dizem trabalhar para responder da melhor forma possível às necessidades dos seus clientes (não é esse o objetivo de qualquer empresa?), mas será que as fintech se preocupam realmente com a nossa saúde financeira?

Yoni Assia, CEO da israelita eToro, plataforma que se apresenta como uma rede social de investimentos (o Miguel Morgado falou com eles e explica em mais detalhe), diz que saúde financeira é uma coisa subjetiva. A seu ver, a quantidade de dinheiro que se tem influencia muito a tal saúde financeira. O conhecimento — saber no que investir e quando investir — também. E perceber o mundo complexo da banca e dos mercados é igualmente importante. Yoni, acrescenta ainda mais um detalhe a esta equação: "segurança financeira também é ter criptomoeda", só para o caso do sistema financeiro de um Estado colapsar.

"Saúde financeira é as tuas finanças trabalharem para ti e não seres tu a trabalhar para fazer face às tuas finanças", resume Elnor Rozenrot, CEO da CreditStacks. A sua empresa procura identificar consumidores premium recém-chegados aos EUA e que precisam de um cartão de crédito apesar de não terem no país um historial financeiro. "O crédito baseado no teu potencial, não no teu historial", é a ideia que vendem.


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Mas sejamos concretos: e se um cliente fizer investimentos arriscados no eToro ou se não conseguir pagar o dinheiro que a CreditStacks lhe emprestou?

"É sempre uma decisão do cliente", diz Elnor. "Nós podemos alertar, mas se o cliente quiser conduzir um carro em direção ao precipício...". A sua empresa, assegura, oferece todas as ferramentas para que o cliente possa evitar o incumprimento, até porque "dívida no geral é pouco saudável, pelo menos foi o que a minha avó me ensinou".

Yoni, por sua vez, explica que sempre que alguém se inscreve na sua plataforma responde a um extenso formulário e aquilo que pode ou não fazer nela vai depender da capacidade financeira declarada. "Por vezes só podem investir 10% do valor", diz.

Ainda é tudo muito novo, como salientou Zach Perret no arranque deste texto. No domínio das fintech há promessas e o potencial é reconhecido, mas há também muito "hype" [entusiasmo extremo], algum receio e uma boa dose de desconfiança. Basta referir o caso da Libra, a criptomoeda da gigante Facebook, que está a enfrentar resistências várias, apesar de Zuckerberg afiançar que é segura. O "Sr. Facebook" não está sozinho. Quando olha para o dinheiro do futuro, Olga Feldmeier, CEO da Smart Valor, que escutámos por breves minutos esta quinta-feira na Web Summit, acredita que a grande disrupção do sistema financeiro é poder ter moeda que não pertence ou é regulada por um Estado. Leemon Baird, seu colega de painel, diz que é uma questão de tempo e de boa governança a generalização das criptomoedas.

Os empreendedores que hoje ouvimos não receiam os reguladores, acreditam que a criptomoeda é o dinheiro do futuro e da segurança, querem descomplicar os investimentos... Mas do que é que têm medo?

"Sim, estamos a ter uma enorme liberdade para oferecer aos clientes o melhor serviço possível no momento", a questão é se "vamos acordar a meio da noite e chegar à conclusão que a Europa e o Reino Unido estão a viver na idade das trevas da tecnologia", diz Anne Boden.

O tema tem sido transversal. François Candelon, diretor-geral do Boston Consulting Group, falou com a Margarida Alpuim sobre o risco da Europa perder o comboio da revolução digital e Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico, deixou o mesmo alerta numa conferência que andou sobretudo à volta do Brexit e que o António Moura dos Santos foi ouvir.

No dia em que nos despedimos de mais uma edição da Web Summit, ficou a mensagem: Europa, não basta falar, é preciso fazer.