"De acordo com os resultados provisórios obtidos neste exercício, em 2019 a capacidade de financiamento das Administrações Públicas (AP) atingiu 403,9 milhões de euros, o que correspondeu a 0,2 do PIB (-0,4% em 2018)", pode ler-se no documento hoje divulgado pelo INE.

Este é a primeira vez que democracia portuguesa não regista um défice, já que o último excedente, ainda registado em contabilidade pública, numa ótica de caixa (a contabilidade nacional, na ótica dos compromissos, só foi introduzida em 1995), tinha sido registado em 1973, no montante de 5.769 milhões de escudos, cerca de 1,7% do PIB.

As previsões do Governo apontavam para um défice de 0,1% no saldo orçamental em 2019 e de um excedente de 0,2% para 2020, um cálculo que será revisto na sequência da pandemia de Covid-19.

No ano terminado no terceiro trimestre de 2019, as Administrações Públicas tinham registado um défice de 0,1% do PIB, e no final de 2018 o défice tinha sido de 0,4% do Produto Interno Bruto.

De acordo com as Contas Nacionais Trimestrais Por Setor Institucional, também divulgadas hoje pelo INE, o saldo positivo de 2019 "traduziu um aumento da receita superior ao da despesa, com variações de 0,8% e 0,2%, respetivamente".

"O comportamento da despesa resultou do efeito combinado da diminuição da despesa de capital em 3,7% e do aumento da despesa corrente em 0,5%", pode ler-se no documento do INE, que acrescenta que o comportamento da despesa "refletiu os aumento das prestações sociais (1,2%), despesas com pessoal (1,3%) e subsídios (5,6%) e as diminuições dos encargos com juros (3,0%) e da outra despesa corrente (3,0%)", com o consumo intermédio a permanecer inalterado.

Já a receita subiu impulsionada por "aumentos de 0,8% na receita corrente e de 2,3% da receita de capital".

"O aumento da receita corrente resultou variação positiva dos impostos sobre o rendimento e património (0,4%) e das contribuições sociais (1,7%), traduzindo a evolução no mercado de trabalho, dos impostos sobre a produção e importação (1,0%) e das vendas (0,1%), que mais que compensaram a diminuição da outra receita corrente (2,5%)", pode ler-se no documento do INE.

No que diz respeito exclusivamente aos valores do quarto trimestre, o saldo das AP foi negativo, "atingindo 1.049,9 milhões de euros, -1,9% do PIB, o que compara com -3,0% em igual período do ano anterior".

"Face ao trimestre homólogo, no quarto trimestre de 2019 verificou-se um aumento quer da despesa total (0,8%), quer da receita total (3,1%)", nota ainda o INE.

Na despesa trimestral "registou-se um crescimento de 1,9% da despesa corrente, resultante de acréscimos nas prestações sociais (4,3%) e nas despesas com pessoal (4,8%), que refletem os encargos associados a medidas de politica de valorização salarial, e nos subsídios (18,5%), e de decréscimos nos encargos com juros (11,3%), no consumo intermédio (0,1%) e na outra despesa corrente (11,4%)".

"Apesar do aumento de 4,9% no investimento, o conjunto da despesa de capital diminuiu 10,5% fruto da diminuição de 35,0% da outra despesa de capital", dada a o efeito da transferência de capital, no quarto trimestre de 2018, relacionada com a "concessão de uma garantia pela Direção Geral de Tesouro e Finanças ao Fundo de Recuperação de Créditos dos investidores não qualificados titulares de papel comercial da ESI e Rio Forte (FRC)".

Este ano, no quarto trimestre, registou-se uma despesa de cerca de 219 milhões de euros relativos à "decisão judicial de compensação do Estado à concessionária AEDL - Autoestradas do Douro Litoral".

Na receita do trimestre, "a receita corrente cresceu 3,1%, em resultado do aumento dos impostos sobre o rendimento e património (1,5%), impostos sobre a produção e a importação (4,0%), das contribuições sociais (6,5%) e das vendas (0,4%), tendo diminuído a outra receita corrente (10,8%). A receita de capital registou um aumento de 6,2%, justificada pela recuperação de créditos do BPP".

Na terça-feira, o primeiro-ministro, António Costa, já tinha antecipado que "com grande probabilidade" Portugal teria registado "um saldo orçamental positivo".

Em 1973, o excedente ficou entre a guerra, a emigração e a crise do petróleo

O ano de 1973 foi o último em que as contas do Estado registaram um excedente antes de 2019, num contexto ditatorial de crescimento económico, de despesas de guerra e de emigração massiva, segundo o professor universitário José Reis.

Em 1973, a capacidade de financiamento das administrações públicas foi de 5.769 milhões de escudos, um excedente de cerca de 1,7% do Produto Interno Bruto (PIB) daquele ano, de acordo com os dados das Séries Longas do Banco de Portugal, um valor atingido num contexto de crescimento económico.

“Ao longo da década de 60 e até 1973, tivemos um período de grande crescimento económico”, disse à Lusa o professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), acrescentando que “foi seguramente a década em que mais crescimento houve” em Portugal.

De acordo com dados disponíveis no portal Pordata, a média da taxa de crescimento real do PIB entre 1961 e 1973 foi de 6,4%.

Segundo o académico, à data, o contexto industrial português era o das “indústrias pesadas, básicas, muito acumuladoras de capital”, e “cresceu-se muito através da siderurgia, da indústria química, das cimenteiras, da hidroeletrificação do país, das barragens”.

No entanto, apesar de ter havido “um grande impacto no PIB e na acumulação de capital”, José Reis salienta que “não se criou emprego novo” como consequência desse crescimento.

“E por isso mesmo aconteceu esta grande circunstância de termos tido um grande crescimento económico e ter saído um milhão e 400 mil pessoas pelas fronteiras pela forma de emigração”, lembrou o antigo diretor da FEUC.

O antigo secretário de Estado do Ensino Superior (1999-2001) referiu ainda que, “apesar da guerra colonial, o Estado era socialmente estreitíssimo, as despesas eram de outra natureza, e, portanto, havia uma grade capacidade do Estado ter uma estabilidade orçamental”.

“Mal fora que não tivesse”, afirmou o economista, lembrando que as despesas com as estruturas antecessoras à atual Segurança Social, da Previdência Social, tinham um grande excedente.

“Estávamos numa fase em que tínhamos contribuintes para a Segurança Social e ainda não tínhamos gastadores da Segurança Social. Porquê? Porque os sistemas da Segurança Social eram muito recentes, limitados a poucas atividades, e sobretudo as pessoas estavam ainda a contribuir, porque era uma mão de obra jovem”, para além da emigração, notou o académico da UC.

Segundo José Reis, a Previdência “era um dos grandes fatores de acumulação de capital”, dado que as instituições “recebiam e ainda não pagavam”, e o número de reformados que tinha direito a apoios “ainda era escassíssimo”.

De resto, só através da inclusão da Previdência no saldo das Administrações Públicas (AP) foi possível chegar a um excedente, dado que a Administração Central (uma das componentes das AP, juntamente com a Administração Local e a Previdência) tinha entrado em saldo negativo devido às despesas com a Guerra Colonial (1961-1974).

“É verdade que a guerra introduziu a primeira situação moderna contemporânea de crise fiscal do Estado, de crise financeira, porque houve ali um aperto, obviamente”, disse José Reis, algo que ameaçava as contas certas, uma ‘bandeira’ “que está no centro da ideologia salazarista”.

Segundo o académico, a ‘bandeira’ estava também “no centro de uma outra ideia, absolutamente falsa também, de que contas certas queria dizer país forte, visto que tinha uma moeda que assentava sobre uma gestão do Estado equilibrada”.

“Contas certas, Estado autoritário, país forte, tudo isso estava associado a uma ideologia que era uma ideologia do autoritarismo, não do desenvolvimento ou da capacidade do país, e muito menos da qualificação” das pessoas, relevou José Reis.

Os anos que levaram ao final do regime do Estado Novo, com o 25 de Abril de 1974, ficaram ainda marcados pela participação de Portugal na EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio Europeu), a partir de 1961, e, em 1972, pela assinatura de acordos com a então Comunidade Económica Europeia (CEE), que assinalou alguma abertura.

No entanto, “o plano geral era de fechamento da economia, e sobretudo havia uma série de protecionismos internos, e um era das taxas alfandegárias, que se traduzia em receitas”, sendo outro o “condicionamento industrial, em que quem estava instalado numa indústria podia impedir os outros de entrar”.

“E depois a grande proteção era evidentemente a dos salários. Proteção para o capital, bem entendido, uma vez que os salários eram irrisórios”, assinalou José Reis.

O ano de 1973 é também marcado pela crise do petróleo, em outubro, e cujas sanções da Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo atingiram diretamente Portugal em novembro, na sequência das autorizações de voo dadas pelas autoridades portuguesas para o abastecimento de Israel pelos Estados Unidos, com recurso à base das Lajes, durante a guerra do Yom Kippur.

Segundo José Reis, a crise teve um impacto no facto de a indústria portuguesa estar muito alicerçada em “setores muito pesados em termos energéticos”, o que “veio abalar muito o projeto de Sines, que obviamente estava pensado, ou as indústrias de construção naval, sobretudo de grandes petroleiros, que foram desenvolvidos na altura em que houve a crise do Suez [fecho do canal egípcio ao tráfego internacional, em 1956]”.

Em 1974, segundo as Séries Longas do Banco de Portugal, registou-se um défice de 4.075 milhões de escudos nas contas das Administrações Públicas.