Passados 40 anos sobre o frustrado golpe militar (23-F), a detenção a 16 de fevereiro do “rapper” Pablo Hasél, por insultar as forças de ordem espanholas, glorificar o terrorismo e injuriar a monarquia, está a ser um pretexto para inflamar consecutivas noites de protestos violentos em avenidas e praças da Catalunha, mas que também se estendem a cidades como Madrid, Valencia, Burgos ou Granada.

A existência, incompreensível, no Código Penal espanhol de um artigo que sanciona “injúrias contra a Coroa”, também contra as “autoridades do Estado” e os “sentimentos religiosos” é causa próxima para os levantamentos na rua – com condenável violência.

A liberdade para expressar ideias e opiniões e para criticar, mesmo no modo mais desabrido, por mais que isso irrite e enfureça o alvo ofendido, faz parte do direito à liberdade de expressão que é pilar de uma sociedade plural, democrática.

Podemos criticar e rir-nos do presidente, do parlamento e dos parlamentares, do governo e dos ministros, dos autarcas, das instituições, dos deuses, profetas e das igrejas e de tudo o mais, desde que a crítica não inclua falsidades. Até podemos, por mais disparatado que isso seja, defender a independência de uma parte do território do país, seja por exemplo, o arquipélago das Berlengas.

O que fica fora da liberdade de expressão é o incitamento à perseguição, à violência ou ao ódio. Esta é prática que merece condenação.

É reconhecido que há complexidades na definição dos limites, muitas vezes frágeis, da liberdade de expressão. O conceito de liberdade de expressão vem do final do século XVII, no centro da tradição filosófica liberal. O conceito tem evoluído com o progresso das sociedades e tem procurado harmonizar-se com o respeito da dignidade de cada pessoa. O que não impede a crítica mais áspera.

Pablo Hasél enfrenta várias condenações. Uma de dois anos de prisão por “enaltecimento e justificação do delito de terrorismo”.

Na origem desta condenação, estão frases como estas:

“No me da pena tu tiro en la nuca pepero. Me da pena el que muere en una patera. No me da pena tu tiro en la nuca socialisto. Me da pena el que muere en un andamio. No me da pena tu tiro en la nuca banquero.  [Não lamento o teu tiro na nuca, tu que és do Partido Popular Espanhol. Lamento é quem morre num bote. Não lamento o teu tiro na nuca, socialista. Lamento quem morre num andaime. Não lamento o teu tiro na nuca, banqueiro.]

São frases que chocam. Põem em causa a natureza humana de quem as diz. Mas, pronunciá-las leva à pena de dois anos de prisão?

Hasél também é condenado por “injúrias e calúnias contra a Coroa e utilização da imagem do Rei”, por frases como estas:

“El mafioso del Borbón de fiesta con la monarquía saudí, entre quienes financian el ISIS queda todo”. [O mafioso (Juan Carlos Alfonso Víctor María) de Borbón em festa com a monarquia saudita, entre aqueles que financiam o ISIS cabe tudo]

“El mafioso del rey dando lecciones desde el palacio millonario a costa de la miseria ajena.” [O mafioso do rei a dar lições do palácio milionário, às custas da miséria alheia ]

“Cuántos millones y millones... han saqueado y derrochado durante tantos años... tantos miembros de la familia real. Pero tienen los años contados... se acerca la república popular. Es la historia de Juan Carlos el Bobón que quieren ocultar...” [Quantos milhões e milhões... pilharam e desperdiçaram durante anos... tantos membros da família real. Mas têm os anos contados... aproxima-se a república popular. É a história de Juan Carlos, o bobo, que querem ocultar]

O Supremo Tribunal Espanhol considera que são “expressões que não podem ser consentidas” e que “constituem ilícito penal”.

É público que Juan Carlos, enquanto rei em funções e depois, teve práticas que estão sob investigação e que suscitam reprovação. Assim sendo, condena-se quem denuncia esse rei?  A liberdade de expressão é metida na gaveta?

Merece protesto que um artista ou qualquer cidadão seja condenado por criticar – obviamente, é inaceitável que o protesto se torne violento e destrua bens de outros.

23-F. 40 anos do assalto ao parlamento

A prisão a que Hasél foi condenado, por chocar com a liberdade de expressão na crítica ao rei, junta-se à crescente rejeição da instituição monárquica em algumas regiões do Reino de Espanha e torna-se assim pretexto para os protestos de rua. Mas estes protestos pela “lei mordaça” são potenciados pelo mal-estar instalado: da frustração pelos longos meses de confinamento pela pandemia com pesadas consequências económicas e sociais, à noção de bloqueio político em Espanha com continuada total incapacidade para diálogo e negociação entre os principais blocos políticos em Espanha.

Tudo isto coincide com o 40º aniversário, nesta terça-feira, 23 de fevereiro, do frustrado golpe militar com assalto ao parlamento de Espanha. A firmeza pública, designadamente por parte do então jovem rei Juan Carlos tornou-se base essencial para a construção do mito fundador da democracia em Espanha.

Porém, todo este tempo depois, crescem incógnitas sobre o que de facto se passou naquele 23 de fevereiro de 1981. Discute-se, sobretudo, o papel do rei Juan Carlos em toda a conjuntura.

Tudo aconteceu numa ocasião de crise com grandes incertezas na política espanhola, cinco anos depois da morte de Franco.

A chamada “transição democrática” seguia por entre turbulências. O governo democrático da UCD (união do centro democrático) encabeçado por Adolfo Suarez tinha entrado em decomposição.

A crise económica e social em Espanha suscitava desencantos com a transição democrática, com bolsas de nostálgicos do franquismo. No dia 23 de fevereiro em que o golpe militar foi desencadeado ia acontecer a investidura de um novo chefe do governo, Leopoldo Calvo-Sotelo, também da UCD, para suceder a Adolfo Suárez.

Passavam 23 minutos das seis da tarde, o plenário das Cortes estava reunido no edifício do parlamento, no coração de Madrid. A Mesa do Parlamento dizia um por um o nome dos 350 deputados na votação do novo chefe do governo quando, de repente, há alvoroço e gritaria: irrompeu na sala em uniforme militar da Guardia Civil e com o então tradicional tricórnio a cobrir-lhe a cabeça, um tenente-coronel (Tejero de Molina) que empunhava uma pistola.

O presidente do parlamento, Lavilla, abre o microfone para perguntar “que se passa?” e o militar responde-lhe “sai daí”. Acrescenta logo a seguir, voltado para os deputados agitados: “Alto aí, ninguém sai, toda a gente no chão”. Num primeiro momento, ninguém reagiu, mas logo a seguir um grupo de homens da Guardia Civil, também fardados, entrou na sala em tropel e a disparar para o teto (apurou-se depois que 45 disparos de pistola e de metralhadora).

Nesse momento, agacharam-se todos menos três dos ameaçados: Santiago Carrillo, líder do PCE, na tribuna dos deputados, seguiu de pé, tal como, na bancada do governo ainda em funções, Adolfo Suárez, primeiro-ministro cessante e o tenente-general Gutiérrez Mellado, vice-presidente do governo. Este ainda tentou agarrar o golpista Tejero, mas foi demovido.

Já de madrugada, à 1h20, sete horas após o desencadear do golpe, o rei Juan Carlos, em uniforme de máximo comandante das forças Armadas, falou através da TVE. Foi uma mensagem gravada duas horas antes no Palácio da Zarzuela. Em tom conforme à gravidade do momento, disse que a Coroa, como símbolo da permanência e unidade da Pátria, não pode tolerar em forma alguma ações ou atitudes de pessoas que pretendam interromper pela força o processo democrático”.

Mas os golpistas não recuaram.

Na ocasião ainda não se sabia que um dos líderes golpistas era Alfonso Armada, antigo secretário do rei, e candidato a chefe de um governo militar em Espanha – o que veio, mais tarde, a levantar dúvidas sobre o papel do rei neste golpe.

Seja como for, a meio da madrugada, já de 24 de fevereiro, o rei enviou pelo telex, que era um Twitter de então, uma mensagem clara ao general Milans del Bosch, um dos comandantes golpistas. O texto integral foi divulgado na hora pela Casa Real:

1. Afirmo mi rotunda decisión de mantener el orden constitucional dentro de la legalidad vigente; después de este mensaje ya no puedo volverme atrás. [Reitero a minha decisão contundente de manter a ordem constitucional dentro da legislação vigente; depois desta mensagem não posso voltar atrás]

2. Cualquier golpe de Estado no podrá escudarse con el Rey, es contra el Rey. [Qualquer golpe de estado não poderá escudar-se com o Rei, é contra o Rei.]

3. Hoy más que nunca estoy dispuesto a cumplir el juramento de la bandera; muy conscientemente, pensando únicamente en España, te ordeno que retires todas las unidades que hayas movido. [Hoje, mais do que nunca, estou disposto a cumprir o juramento da bandeira; muito conscientemente, pensando unicamente em Espanha, ordeno-te que desmobilizes todas as unidades mobilizadas]

4. Te ordeno que digas a Tejero, que deponga su actitud. [Ordeno-te que digas a Tejero que se renda]

5. Juro que ni abdicaré la Corona ni abandonaré España; quien se subleve está dispuesto a provocar una guerra civil y será responsable de ella. [Juro que não abdicarei da Coroa e não abandonarei Espanha; quem se subleva está disposto a provocar uma guerra civil e será responsável por ela]

6. No dudo del amor a España de mis generales; por España, primero, y por la Corona, después, te ordeno que cumplas cuanto te he dicho.” [Não do amor que os meus generais têm a Espanha; por Espanha, primeiro, pela Coroa, depois, ordeno-re que cumpras o que te tenho dito"

O sequestro do parlamento duraria mais várias horas, até às 10 da manhã do dia seguinte, quando foi autorizada a saída das deputadas. Uma hora depois, saiu toda a gente. Os golpistas saíram sob detenção militar e vieram a ser condenados em julgamento.

Mas, 40 anos depois, ainda subsistem dúvidas que põem em questão o papel do rei Juan Carlos, embora seja inquestionável o protagonismo real na desarticulação do golpe.

A sombra da suspeita, mesmo que infundada, também contribui para a atual zanga alargada na sociedade espanhola, dividida em blocos e com má relação com a tolerância.

A TER EM CONTA:

Em Myanamar, antiga Birmânia, a Junta Militar volta aos métodos que usou em grande parte das últimas seis décadas: repressão. Mas, desta vez, o povo não sai da rua. O carisma de Aung San Suu Kyi impõe-se.

Latifa, a princesa sequestrada pelo pai, emir do país que se pretende espelho do futuro.

Estados Unidos da América: um ano de Covid-19, 500 mil mortos. O sofrimento em três primeiras páginas: esta, esta e esta.