Joe Biden foi declarado vencedor das eleições americanas, vencendo o voto popular e o colégio eleitoral, alcançando um mandato claro para virar a página que Donald Trump tinha vindo a rabiscar, rasgar e talvez comer nos últimos quatro anos. No entanto, quaisquer ilusões de vitória retumbante de Biden (ou melhor, de derrota humilhante de Trump) caíram por terra há quase uma semana, logo à saída dos primeiros resultados, mormente aqueles que foram sendo comunicados sobre a Florida, Texas e Ohio. Se é certo que Biden ganhou as eleições, não se pode dizer que os americanos repudiaram Trump. Estas eleições não foram uma cabazada, antes uma final decidida por moeda ao ar.
Não há dúvidas que Joe Biden, com a sua empatia, misturada com uma ausência de ideologia que o tornou suficientemente apelativo para todos os quadrantes políticos que quisessem tirar o brinquedo a Trump, fez o suficiente para retirar a presidência a Donald. No entanto, a sua vitória curta e até (ilegitimamente) disputada não chega para derrubar o trumpismo. Mais de 70 milhões de pessoas votaram em Trump. Serão todos burros? Taxativamente reduzir o eleitorado de Trump à rarefacção de oxigénio no cérebro é divertido no contexto da celebração da vitória, mas perigoso para os próximos quatro anos.
70 milhões de burros, mesmo fiando em descrições caricaturais de americanos, são burros a mais. Análises políticas que deixam de fora metade da população, enclausuradas na mundividência privilegiada dos centros urbanos, foi uma das coisas que nos levou até aqui. Esperar que, depois de Trump, deixará de existir - nos Estados Unidos e não só - uma divisão enorme entre a consecução de expectativas dos diferentes grupos sociais que povoam uma democracia é como deixar de levar o carro à oficina porque desta vez o carro passou na inspecção à primeira.
70 milhões não serão todos racistas, xenófobos, machistas. Dentro dos 70 milhões, há não-brancos, imigrantes e mulheres. Atacar Trump pelo racismo, pela falta de empatia, pela incompetência a gerir a pandemia terá chegado para ganhar as eleições, mas a campanha “Anyone-But-Trump 2020” não bastará para voltar a unir o país. Para chegar aos descontentes que a classe política bipartidária ignorou, faltará muito trabalho de mensagem e de reposicionamento ideológico. O Trumpismo dificilmente será derrotado com maniqueísmo.
Em relação às eleições da semana passada, Joe Biden resolveu o problema com classe, não resolveu nenhum problema de classe. Os Estados Unidos têm muitos brancos, ricos, privilegiados, mas não configuram metade do país. Metade do país que Joe Biden vai liderar abdicou de relações pessoais, discutiu com sobrinhos e expôs-se à vergonha pública para votar num segundo mandato de Trump. Alguns serão pessoas más, outros serão só pessoas pobres e esquecidas pelo sistema. Muitos dos eleitores de Trump terão noção de que ele é moralmente inapto para ser presidente, mas a política só se cinge a um campeonato de pureza ética para aqueles cuja vida pouco ou nada é influenciada pelas decisões daqueles que estão no poder.
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