Os livros de história vão catalogar os últimos 15 anos da vida europeia como a era Angela Merkel. A chanceler alemã cumpriu neste domingo 15 anos em funções (assumiu o governo em Berlim em 22 de novembro de 2005), com extraordinária taxa de aprovação pela cidadania alemã, estimada na edição de novembro do painel mensal ARD/ Deutschlandtrend em 74% de opiniões favoráveis. Merkel já anunciou a decisão pessoal de deixar a vida política no final do atual mandato. Falta, portanto, menos de um ano. Não está à vista qualquer personalidade com robustez política para a sucessão. É um problema para a Europa, tendo em conta a liderança europeia que Merkel assumiu nestes 15 anos.
Após quatro mandatos, a longevidade de Merkel na chefia sem interrupções do governo alemão tem dimensão rara na Europa ocidental e só tem comparação com outro caso alemão, Helmut Kohl, correligionário e mentor de Merkel, que foi chanceler alemão por 16 anos e 26 dias. Kohl foi o chanceler da reunificação alemã.
Merkel é a chanceler que administrou as três mais graves emergências europeias deste século. Uma delas, a dos refugiados, esteve à beira de a fazer cair da poltrona de mulher política mais poderosa no mundo. Mas Merkel, corajosa, soube impor-se, pôs a Alemanha a acolher mais de um milhão de migrantes em fuga da guerra e da miséria, revelou-se estadista, não teve medo de perder votos com a postura generosa contestada por porções crescentes do eleitorado. A chanceler é, no tempo de Trump e de outros chefes políticos que tomaram amparo na via do presidente dos EUA, a líder que encabeça a convergência do mundo democrático, solidário e respeitador dos direitos humanos, frente às derivas do populismo agressivo que cresceu muito nestes últimos quatro anos. A firmeza experiente de Merkel faz falta para o combate por esses valores europeus.
Também há más memórias da governação Merkel. É a dos traumáticos tempos da austeridade como resposta à crise financeira de 2008. A chanceler impôs a política de procura de equilíbrio orçamental nos países europeus, o que implicou radical redução do défice, à custa de cortes na despesa, sufocante perda de poder de compra e muita perda de emprego. Os portugueses, os gregos, os espanhóis, os irlandeses e os italianos sentiram tremendamente no dia a dia o sofrimento causado por essa opção política draconiana do austero e poderoso ministro das Finanças de Merkel, Wolfgang Schaeuble. O erro desta via política veio a ser reconhecido e, então, Merkel delegou na liderança corajosa de Mario Draghi no Banco Central Europeu (BCE) a tarefa titânica de salvar muita Europa empobrecida da depressão pela austeridade.
Merkel voltou a impor-se como estadista neste 2020, que tem a pandemia do século. Patrocinou a queda de antigos dogmas europeus, promoveu a mutualização da dívida dos diferentes países europeus e impulsionou a invenção do famoso Recovery Fund para ajudar à recuperação da economia de países mais devastados pela Covid.
Em quinze anos como chefe de governo alemão e líder europeia são zero os casos ou escândalos em volta de Angela Merkel. Ela mudou a prática política, levou a coligação CDU que encabeçou a abandonar a tradição conservadora e a adotar a postura reformista pós-ideológica que atraiu eleitores liberais e social-democratas. É uma escolha que abriu caminho ao avanço da extrema-direita AfD. Mas com Merkel sempre firme a recusar qualquer hipótese de entendimentos com quem tem ideologia intolerante, xenófoba ou racista.
É facto que Merkel soube lançar para a presidência da Comissão Europeia a amiga Ursula van der Leyen, então quase desconhecida e que está a revelar-se a mais valente líder europeia desde Delors. Assim. que aponte soluções para a sucessão dela própria no crítico ano que vem.
Há que reconhecer que a tarefa ainda está incompleta. A crise da pandemia revelou-se excelente oportunidade para relançar o ideal europeu. As ideias apresentadas são ambiciosas e estimulantes. Mas, decorridos cinco dos seis meses do turno alemão de presidência europeia, todas aquelas boas promessas estão ainda em espera. Se calhar, transitam para o semestre seguinte, de presidência portuguesa. Alto desafio.
A TER EM CONTA:
Esgotam-se os recursos de Trump para subverter os resultados eleitorais com o fantasma da conspiração. Os chefes populistas pelo mundo perdem o instigador. Com o governo Biden, regressa a América liberal, multilateral e mais amiga dos aliados do que dos outros.
O que está a evoluir entre Israel e a Arábia Saudita? Por mais complexos que sejam os protagonistas, é sempre melhor que se entendam.
Enfim, a esperança.
Entramos na época dos balanços do ano. Neste caso, comecemos pelos álbuns musicais.
Comentários