Sangue, ADN e tal, está tudo muito bem, não se discute, mãe é mãe, primo por via da avó que teve uma cunhada que... enfim, família não se escolhe, é o que dizem e eu, só porque posso, venho aqui dizer que não é verdade. Escolhemos a nossa família lógica, nunca a biológica, ok, mas a lógica escolhemos, são as nossas pessoas, as que contam a nossa história, as que riem das coisas que recordamos, as que nos entendem no silêncio.

Há muitos anos, escolhi a minha família lógica brasileira que, crescendo ano sim, ano não, mantém um núcleo central, e é uma família feita de pessoas extraordinárias. O núcleo começou a ser tecido por duas mulheres muito diferentes, a Paula e a Leila. Se nos perguntarem como chegámos aqui, não saberei dizer. A Paula é jornalista, a Leila faz assessoria. A Paula deu-me um afilhado maravilhoso e a amizade com o Plínio. A Leila deu-me a Marianna e a Larissa e muitas noites de riso.

Sei que todos os anos, em Dezembro, a festa faz-se com as conversas que não têm silêncios estranhos, com os risos libertos pelas esplanadas, com as invasões de cozinha, de frigorífico, com discussões sobre vinho tinto fresco e ainda sobre a língua, a riqueza imensa do português que, com rebeldia e vaidade, vai sendo o que quer e como quer.

Falamos sobre o acordo ortográfico e sobre quem decidiu retirar o acento na palavra "pára" e de como é importante que exista acento. Brincamos com as palavras e as expressões - empregada que vem com o café e pergunta "vocês adoçam?" - e ainda "pé na jaca" ou esta palavra maravilhosa que é "isopor" (esferovite) ou o verbo estabacar (cair, estatelar).

Por vezes, neste português fechado, de lábios que pouco se movem, sem grande musicalidade, a uma velocidade relativamente apressada, faço discursos que, percebo pelos rostos, não são compreendidos e, no fim, resta a gargalhada e eu lá vou falando de maneira mais lenta, com um pé no sotaque alentejano que, afinal, me liga à minha família biológica. O maior terror das minhas amigas é falar comigo ao telefone. Parece que aí falo russo, dizem-me, e eu respondo sempre: russo mas com amor. No fim, brindamos a esta amizade, sem longe nem distância, e sabemos que estamos aqui para o que for, mesmo que o português nos trame e precisemos de tradução.