Se vivesse isolado numa ilha, sem qualquer consciência do outro, não saberia o que era a vergonha: aquela emoção que nos estrangula o estômago, ruboriza a face, quando perdemos o controlo sobre a forma como os outros nos veem. A ausência permanente do outro liberta-nos da vergonha, ainda que a solidão nos amarre de tantas outras formas.

A vergonha nasce com a consciência do outro, da sua presença, do seu olhar, e do valor que damos ao seu julgamento.

Há quem fale em duas dimensões da vergonha: a primeira é aquela que sentimos antes de agir, e que de certa forma nos detém, nos suspende a mão, a língua ou o ato; esse recato, essa modéstia, tantas vezes alcandorada em virtude, não é mais do que uma versão light da vergonha, que nos acode assim que pensamos no que seria, no que se diria, se acaso levássemos a cabo certo pensamento, certo ensejo, acaso se soubesse certo segredo ou adivinhasse certa tentação. Esta é a vergonha que nos recomendam tantas vezes ter na cara, ou que nos acusam de faltar quando por acaso, desinibição ou coragem a transpomos.

É esta vergonha que nos impede de falar em reuniões importantes, com medo que nos reconheçam a estupidez e nos descubram como nós nos vemos, impostores; que nos impede de falar livremente numa língua estrangeira que não dominamos, para que não nos julguem ignorantes; que nos faz esconder gostos, paixões ou desejos, para evitar rejeições ou julgamentos moralistas; que nos coíbe o comentário ou a crítica ou a reivindicação, especialmente se dirigida a alguém com mais estatuto.

É a vergonha que nos faz tapar certas partes do corpo, ou pedir para apagar a luz antes de nos despirmos. É a vergonha que nos faz ocultar certas doenças, alguns defeitos e muitas opiniões.

Esta vergonha é a vergonha que sente quem não quer ser destapado. A segunda é a vergonha que sentimos quando nos destapam. É aquela sensação agoniante de saber à vista dos outros aquilo de nós que queríamos guardar. É uma vergonha que pode doer ou só mortificar, que nos faz querer desaparecer, que viola a nossa ambição de controlar a imagem que o outro guarda de nós.

Quando cantamos sozinhos no carro e notamos o olhar do condutor do lado. Quando vamos pela rua e tropeçamos em frente aos vizinhos. Quando expõem os nossos erros no meio de um debate público. Quando somos apanhados a mentir. Quando gostamos, queremos, ou fazemos algo que não é “suposto”, porque são coisas próprias de outras profissões, ou de outras classes sociais, ou de outros géneros, ou de outras gentes. Quando nos desvendam como vítimas. Quando nos desvendam como culpados.

Porque não quero que me ouçam desafinar, apesar de a maioria das pessoas não cantar melhor. Porque eu não quero que achem que eu sou trapalhão e não sei colocar um pé depois do outro. Não quero que achem que eu não conheço os factos, ou que não sou capaz de os interligar logicamente. Não quero que me achem mentiroso, ou que não estou à altura das expectativas que me traçaram. Não quero que me vejam como uma vítima, porque eu sou forte. Ou que me vejam como um culpado, porque eu sou bom.

Cada um terá necessariamente a sua opinião sobre si próprio. Aquilo em que concordamos é que essa imagem interior nunca é boa o suficiente para apresentar aos outros. Podemos sempre dar uma polidela, ocultar qualquer coisinha, acrescentar um floreio.

A nossa versão pública é quase sempre uma versão altamente editada de nós próprios; e, até certo ponto, é nosso o direito de decidir como nos apresentamos. O que queremos ser pode ser tão importante como aquilo que efetivamente somos.

É por vezes a vergonha – e nada mais - que impede muitos comportamentos condenáveis. Que filtra impulsos sórdidos, que obriga a um grau de socialização e educação e civismo. A vergonha castra muito do que devia ser livre; mas também preserva a capacidade de nos encaixarmos na sociedade e nos outros.

A tensão entre o que a vergonha traz de bem à comunidade e o que traz de mal ao indivíduo é uma tensão fundadora do “eu”, que vive em permanente descoberta da parte de si que é para mostrar. Hoje, essa tensão está ameaçada como nunca esteve.

Vivemos na era da exposição compulsiva e acumulada de identidades semi-fabricadas. Construímo-nos para os outros através de uma coleção de momentos diariamente atualizados que se tornam cadastro e se acumulam e permanecem. O nosso passado mais antigo continua vivo no presente e viverá no futuro com a atualidade de uma busca na internet. A aparência de autenticidade, mais do que a originalidade ou a qualidade, tornou-se a grande lança do protagonismo. Estamos e queremos estar mais destapados e mais visíveis e isso torna-nos mais audazes, menos envergonhados e, até certo ponto, menos envergonháveis.

A queda da vergonha está na base de grandes movimentos de libertação e empoderamento de comunidades que viveram tanto tempo sob o peso de construções sociais castradoras. O movimento feminista, o orgulho LGBT, as pessoas que deram o passo em frente e partilharam experiências de racismo, doenças mentais, interrupções voluntárias e involuntárias de gravidez, violência doméstica, conquistaram a vergonha e, ao fazê-lo, libertaram milhões de segredos de milhões de pessoas que os transportam agora melhor em conjunto.

Mas foi também a queda da vergonha que empoderou aqueles que até agora silenciavam as opiniões e tendências que o centro da sociedade marginalizou, que tiraram do armário e colocaram no centro do debate público sentimentos racistas, xenófobos, que desinibiu tantos a rejeitarem o politicamente correto (que não é mais do que a vergonha aplicada ao discurso).

Foi a falta de vergonha, mais do que outra coisa, o que me impressionou em Trump. A ousadia de dizer o que ninguém antes dele disse, daquela forma, sem nenhum filtro, e a compreensão de que muitos não o diziam apenas por temerem a reação do vizinho, do amigo, do familiar. Trump foi um libertador, sim, ainda que de algo que eu esperava inocentemente que pudéssemos manter escondido para sempre.

A perceção de que aquilo que escondemos pode existir em público é transformadora e poderosa, para o bem e para o mal.

As redes sociais não deixam ninguém estar sozinho numa ilha; mas possibilitam a cada grupo de pessoas ter uma ilha só para si. Não estão verdadeiramente sozinhas, mas estão de certo modo ausentes do outro – do outro que é diferente. Nessa ilha, não cabe a vergonha: elas podem ser autênticas, desvelar-se como são, e serem aceites e celebradas. Isto é lindíssimo e é assustador.

Tenho a sensação de que um mundo de gente a destapar-se será necessariamente um mundo de gente mais livre, mas também menos disponível para o sacrifício da sua individualidade, da sua opinião, da sua mundivisão, em prol da comunidade, do consenso, do progresso.

É que, de certa forma, é a vergonha de estar errado que nos leva a corrigir o erro; a vergonha de mentir que nos impele a afirmar a verdade.

Tão importante como libertarmo-nos da vergonha que nos impede de sermos nós próprios é resgatar desta queda a parte da vergonha que nos permite viver juntos em sociedade.

Não tenho sugestões, nem sei como isto se faz: é sem qualquer vergonha que assumo que vos roubei dez minutos sem ter nada para ensinar. Isto é o mundo a acontecer, e o cronista observa-o e escreve-o.

Mas estou convencido que pensarmos nisto em conjunto é um primeiro passo que fica dado.