A Inglaterra é a nação que com a Magna Carta, em 1215, criou as bases do moderno estado de direito e semeou o modelo de democracia parlamentar. Daí o respeito e até fascínio pelo modo de funcionamento da câmara dos deputados, em Londres.

O Reino Unido nunca teve uma Constituição como as tantas outras pelo mundo. O que há é uma tradição que não está está escrita, que não está assente num livro ou manual, que não resulta de qualquer assembleia constituinte. O que no Reino Unido equivale à Constituição que é pilar da organização da maioria dos países, é um conjunto de bases fundamentais que foram sendo ajustadas e melhoradas ao longo dos séculos. Essas bases estruturam a composição do Estado britânico a partir de três poderes: o legislativo (o parlamento), o executivo (o governo) e o judiciário (os tribunais). Há a casa real, mas que ficou com poder apenas simbólico, de influência. A rainha pronuncia em cada ano o discurso sobre o estado da nação, mas quem o escreve é o governo.

Isabel II reina mas não governa. Os chefes de governo consultam-na, têm o dever de a informar, mas a rainha não tem o poder de decidir. Não pode tomar a iniciativa de demitir o primeiro-ministro ou de convocar eleições. A rainha nomeia, demite ou convoca, mas em nome do governo, que por sua vez resulta da vontade da maioria no parlamento. A rainha, já com 67 anos de mandato, não decide mas tem um poder imenso, o da influência emocional. Ela reúne o consenso da maioria da nação simbolizado no “god save the queen”.

O atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em plenitude de funções embora sem ter a legitimidade reforçada dos políticos que ganham eleições parlamentares, ousou servir-se da rainha como escudo para que o parlamento britânico fique sem poder travar a obsessão que ele tem de garantir que o Reino Unido sai da União Europeia já no fim do mês que vem. Johnson levou a rainha a aceitar que o parlamento britânico tenha prorrogação das férias por cinco semanas, entre 9 de setembro e 14 de outubro – nunca, desde 1945, tinha havido uma assim tão longa paragem extraordinária.

Na prática, o que Johnson quer é neutralizar os deputados: evitar que eles possam organizar-se para impedir o Brexit sem acordo.

Esta decisão de silenciar os deputados não surpreenderia na Venezuela de Maduro ou na ditadura de uma qualquer outra república das bananas. É impensável num país que tem a referência para todos os sistemas parlamentares.

Toda a gente reconhece que o Reino Unido é uma democracia parlamentar onde prevalece a vontade do povo, também expressa pelos seus representantes, os deputados.

O que Johnson está a fazer com a artimanha do fecho do parlamento é concretizar um golpe: ele invoca a vontade do povo expressa há três anos num referendo cuja campanha decorreu inundada de mentiras. Então, 52% do eleitorado que votou escolheu deixar a Europa. Desde então, muitos argumentos novos surgiram. Ficou claro que a verdade tinha sido sacrificada na campanha do referendo. Há gente que votou pela saída britânica da União Europeia que está a dizer que mudou de opinião e que vê a saída como erro colossal. Será que há uma nova maioria a favor da permanência? Não se sabe.

Johnson e muitos dos seguidores exigem que não haja oportunidade para repensar. Forçam o salto para o vazio do “no deal”, custe o que custar.

Não há memória de um primeiro-ministro britânico neutralizar assim o parlamento que, de facto, é a fonte do poder que ele tem. Johnson chegou há dois meses à chefia do governo de Londres, na sequência da queda de Theresa May. Foi o designado numa votação interna de 90 mil militantes inscritos no Partido Conservador, maioritário nas últimas eleições neste país com 65 milhões de cidadãos.

Johnson repete que vai concretizar em 31 de outubro a vontade que o povo exprimiu no referendo de 2016. Para esse objetivo, radicaliza o choque político, está a desunir o reino que já não estava muito unido, ousa pretender amordaçar o parlamento que representa a vontade do povo e não se furta a tratar mal a verdade.

Se os deputados britânicos, incluindo alguns da bancada do governo, nesta semana conseguirem frustrar a manobra de Johnson e levar o Reino Unido para eleições, ficará para a história um serviço exemplar de respeito pela democracia parlamentar.

Até pode acontecer que, a seguir, Johnson ganhe as eleições (ele é hábil a explorar a radicalização de campanhas) e concretize a saída britânica da União Europeia, custe o que custar.

Mas o Reino Unido segue a longa prática democrática e livra-se do golpe de um primeiro-ministro que desprestigia o país e a política.

A TER EM CONTA:

José Tolentino de Mendonça, é poeta, é padre e é uma grande pessoa. O papa mostra, repetidamente, que não está distraído: há ano e meio, chamou-o para conduzir o retiro de reflexão papal, depois para dirigir a biblioteca do Vaticano, elevou-o a bispo e, agora, a cardeal.

A corda está a ficar demasiado esticada em Hong Kong.

A Espanha teve eleições gerais há quatro meses, mas continua em impasse político.

Está por aí a nova estrela da Geração Z, chama-se Billie Eilish.

Uma primeira página escolhida hoje: tem lá o choque político no Reino Unido, a escalada perigosa em Hong Kong e deixa-nos à espera do filme de Soderbergh sobre os Panama Papers.