Os indicadores não mentem: seis milhões de venezuelanos - um em cada cinco - abandonaram o país, a produção petrolífera passou de 3,25 milhões de barris diários em 2008 para 850 mil em 2023, o PIB per capita desceu de 16.000 dólares em 2014 para 1.500 em 2021.
Ou seja, a Venezuela, onde vivem actualmente 200.000 portugueses, passou duma economia rica e (relativamente) democrática, para uma ditadura populista e supostamente socialista onde a maioria da população passa fome e sobrevive da distribuição de alimentos de baixa qualidade.
O que aconteceu nestes anos? Até à década de 1990 o país foi dirigido por uma rotação de três partidos supostamente democráticos, intercalados com golpes militares vários, enquanto a população, especialmente a classe média, vivia uma relativa prosperidade, alimentada pelo petróleo.
A crise dos preços do petróleo da década de 1980 castigou bastante a população (uma vez que o país nunca produziu praticamente nada a não ser petróleo) e levou a que um tenente-coronel Hugo Chávez levasse a cabo mais um golpe, em 1992.
Seguiram-se anos de disputa violenta entre várias facções, ao mesmo tempo que a crise económica ia apertando mais a população e radicalizando as opiniões. Depois de vários golpes e contra-golpes, constitucionais ou não, finalmente, em 1998 Chávez ganhou as eleições e mostrou imediatamente que estava disposto a mudar o jogo político no país.
Prometeu uma democracia mais inclusiva, uma economia mais equilibrada entre ricos e pobres e inventou uma espécie de ideologia híbrida a que chamou bolivarianismo - uma referência ao General Bolívar que no século XIX liderou várias guerras de independência contra o que era então o colonialismo espanhol.
À medida que ia governando, Chávez criou um sistema populista socializante e a tal política “bolivariana”, que na realidade tinha muito pouco a ver com as ideias de Bolívar, mas soava bem com forma original de governar em nome do povo.
O “chavismo”, como lhe chamam os desafectos, navegou bem nos lucros do petróleo, promovendo educação gratuita e cuidados médicos, ao mesmo tempo que perseguia abertamente a “burguesia” e encarcerava os opositores. Mas foi fazendo eleições, cada vez menos claras, e ganhando-as com um mínimo de credibilidade.
Enquanto os países da América do Sul iam mudando da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, o bolivarinismo tornou-se uma espécie de mantra político contra o “imperialismo norte-americano”.
Entranto estabeleceu-se uma relação simbiótica entre a Venezuela e Cuba; os cubanos precisavam desesperadamente do petróleo venezuelano e em troca instalaram um aparelho policial de repressão comunista na Venezuela. O país passou a ser dominado por uma oligarquia militar que enriquecia à custa da péssima gestão da indústria petrolífera.
Em 2013, a situação já estava bastante má. As empresas norte-americanas que extraiam o petróleo foram nacionalizadas em nome do anti-imperialismo, mas a petrolífera nacional não conseguia manter a eficiência dos imperialistas, ao mesmo tempo que os norte-americanos revidavam com um embargo do petróleo.
Os cubanos, que compravam a produção reduzida a preços de saldo, só tinham açúcar, charutos e repressão para dar em troca. Nesse ano Chávez morreu de cancro (em Cuba, precisamente) e foi substituído por Nicolas Maduro, um ex-condutor de autocarro que tinha subido na hierarquia chavista à custa de uma fidelidade absoluta.
Maduro não tinha - não tem - a inteligência, a esperteza e o sentido de oportunidade que tinham tornado Chávez num símbolo da esquerda sul-americana. O aparelho de Estado fora paulatinamente destruído pelo culto da personalidade do seu fundador e, sem os fundos do petróleo, já não tinha condições de comprar os menos afortunados com serviços sociais e entregas de alimentos pelos bairros mais pobres.
Maduro eliminou o Parlamento - quer dizer, substitui-o por uma assembleia paralela quando perdeu as eleições parlamentares - demitiu a Procuradora Geral de Justiça e aparelhou o sistema judicial com sectários. Eliminou a comunicação social independente e reprimiu brutalmente as vozes dissidentes. Em 2018 acabou com os partidos políticos e proibiu figuras da oposição de concorrerem a eleições ou lugares públicos. Sempre em nome do bolivarianismo e do anti-imperialismo, criou uma ditadura pessoal.
Cabe aqui tentar esmiuçar os rótulos políticos e as alianças internacionais que deixaram de fazer sentido com o fim da Guerra Fria. Em termos gerais, a América do Sul (e a Central) é profundamente anti-americana, devido à interferência declarada dos Estados Unidos na política dos países, promovendo ditaduras, derrubando regimes e dominando as elites económicas em seu benefício.
Esse anti-americanismo não faz mais sentido no actual período pós-Guerra Fria, por duas razões; primeiro, os americanos estão mais preocupados com a China, a Áfica e o Médio Oriente, tendo verificado que os governos de esquerda sul e centro-americanos vão e vêem sem ameaçar realmente os interesses comerciais dos Estados Unidos. Segundo, os sul e centro-americanos têm problemas próprios, como a má distribuição da riqueza, a falta de apoios sociais e a proliferação de gangues - gangues de drogas, especificamente, e gangues de exploração religiosa que vivem de prometer o paraíso aos incautos.
Os conceitos de capitalismo e comunismo, que determinavam as alianças durante a Guerra Fria, foram ultrapassados por ideologias híbridas mais complexas. A Venezuela, que tem o apoio dos comunistas de Cuba e das esquerdas mais líricas dos restantes países da América do Sul, não é um país comunista, qualquer o critério que se use para a classificar. A Rússia, que era a pátria-mãe do comunismo, é uma ditadura unipessoal; a China é capitalista e imperialista; o Irão é anti-democrático e teocrático, A Argentina, que durante anos foi peronista, agora é dirigida por uma anarquista de direita. O Chile, que foi socialista e depois uma ditadura de extrema-direita, agora é uma democracia. Israel, uma democracia, segue uma política racista/imperialista com os países que a rodeiam, países esses que são basicamente autocracias teocráticas, ou então, caso do Líbano, anarquias dominadas por extremistas religiosos. A União Europeia, que se pretende uma democracia, tem no seu seio a Hungria, uma autocracia nacionalista.
Nesta confusão de todas as cores e feitios, alguns novos, outros repescados de ideias que se julgavam desaparecidas, as alianças são complexas e os interesses difíceis de perceber.
Voltemos à Venezuela. Contra sua vontade, Maduro aceitou realizar eleições supervisionadas pela comunidade internacional, num acordo mediado pela Noruega e que levou meses a concluir.
Na América Latina, há países que sempre apoiaram Maduro, ou porque são ditaduras semelhantes - caso da Nicarágua - ou porque lhes interessa comercialmente - caso de Cuba - ou ainda porque defendem uma solidariedade anti-americana. No entanto o clima actual é mais propenso a aceitar regimes que sejam eleitos democraticamente, como é o caso do Brasil.
Aliás, é sintomático que o Brasil ainda não tenha tomado uma posição definitiva quanto a esta eleição. Ao que tudo indica, não foi uma eleição democrática; não se sabem ainda os resultados de todas as urnas, houve perseguições e mortes nas ruas, assembleias de voto fechadas e todos os sinais de uma votação aldrabada de todas as maneiras, legais e brutais. Vários países recusaram-se a reconhecer o resultado e Maduro cortou relações diplomáticas com eles.
Um bom exemplo desta confusão é o facto de o Partido Comunista da Venezuela não ter reconhecido os resultados, enquanto o Partido Comunista Português se apressou a felicitar Maduro…
Maduro, como sabemos, declarou imediatamente vitória, ainda com apenas 60% dos votos contados. Varias pesquisas independentes calculam que o líder da oposição, Edmundo Gonzáles Urrutia, terá vencido com 64% do total.
Na madrugada desta segunda-feira, o chefe do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Elvis Amoroso, escolhido por Maduro, anunciou a vitória do presidente , assegurando que estavam contados 80% dos votos já estavam apurados. Segundo ele, Maduro tinha 51,2% dos votos, contra 44,2% de seu principal rival.
Com 21 milhões de eleitores registados nas 30 mil mesas de votação, as eleições foram muito concorridas, com extensão de até três horas do horário em várias zonas eleitorais, devido às longas filas. O voto é electrónico, mas os eleitores e os controladores das meses recebem imediatamente um comprovativo impresso. Ora esses comprovativos ao fim de uma semana ainda não apareceram todos porque, conforme diz Maduro, houve sabotagem de "agentes estrangeiros.
A oposição denunciou que o CNE interrompeu transmissão de dados de diversos centros de votação e que testemunhas foram impedidas de obter os boletins de urna que certificam os votos em cada centro. Enquanto opositores faziam vigília na porta dos colégios eleitorais, esperando os boletins, forças de segurança do governo e os temidos coletivos chavistas percorriam as ruas de Caracas e do interior, tentando afastá-los. O receio de fraude eleitoral empestava o ar.
Vídeos nas redes sociais mostram episódios de violência em várias cidades
Segundo Daniel Lozano, no “La Nación”: “Mesmo em redutos chavistas como o bairro 23 de Janeiro, território dos grupos paramilitares onde Hugo Chávez votava, Edmundo González venceu Nicolás Maduro. Porém, mais uma vez o chavismo construiu a sua própria realidade a sangue e fogo, determinado a desconsiderar a vontade do povo. Antes mesmo de as autoridades eleitorais o anunciarem, diversos porta-vozes chavistas garantiram sem corar que Maduro tinha confirmado o seu terceiro mandato.”
A questão é que esta crise interna da Venezuela, sem fim à vista - mas cujo fim é previsível… - tem repercussões regionais graves. Para já, para os países que fazem fronteira com a Venezuela, que tiveram de receber seis milhões de refugiados e possivelmente vão receber muitos mais.
Depois porque os países que apoiam Maduro - Rússia, China, Irão, Síria e Turquia - têm aqui mais uma desculpa para meter o bedelho na América do Sul. Cuba, que evidentemente já apoiou, não carece de explicação mas é difícil saber quais os interesses dos outros. Uma coisa é certa, estes apoios não são de graça.
Finalmente porque os Estados Unidos - que, ao contrário do que se diz, não precisam do petróleo venezuelano - não estão interessados em mais distúrbios na região e na consequente onda de emigração que continua a dirigir-se para o Norte, passando pelo México.
Entretanto, Maduro já cortou relações diplomáticas com a Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai.
Uma semana depois das eleições, a agitação continua.
Eleições como esta, em vez de aperfeiçoarem o sistema, mostram como ele é frágil.
Quanto aos 200 mil portugueses que ainda permanecem na Venezuela… Serão bem-vindos aqui, com certeza.
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