A minha aventura pela Patagónia começa na minha cabeça, com uma ideia. Uma ideia de viajar sozinho. Uma ideia é sempre boa de se partilhar, não custa, dá-nos prazer contá-la. Quando a ideia passa a cartão de embarque, a respiração fica mais ávida e esbaforida. Nunca tinha viajado sozinho.
Ia até ao sul do Mundo, ia subir às montanhas, ia conhecer novas pessoas e novas realidades. Porque uma viagem é isso mesmo: absorver realidades distintas num único contacto. Às vezes bastam segundos para a vida dar uma volta. Ao primeiro contacto, não são as pessoas mais simpáticas do mundo. Depois de um pequeno sorriso ou de uma palavra agradável, mudam a atitude.
Aproveitei o início da viagem para respirar fundo, para me preparar para o que se aproximava. Reencontrei a minha irmã que estava a estudar em Buenos Aires, visitámos Mendoza, bebemos vinho e depois separámo-nos. A minha irmã regressou a Buenos Aires e eu rumei até ao Chile. Duas noites em Santiago para me mentalizar que nos dias seguintes ia testar novamente os meus limites. De Santiago apanhei um voo para Punta Arenas, um autocarro até Puerto Natales e foi ali, naquela pacata e modesta cidade, que me deixei apaixonar pela verdadeira Patagónia.
O motorista que me levava até à entrada das Torres Del Paine – o sítio mais bonito do mundo – alertou-me para o perigo da paixão. Uma vez apaixonado pela Patagónia, seria difícil regressar a casa. Naquele porto, poucas vezes tranquilo, dadas as rajadas de vento violentas, com as torres cobertas de neve como pano de fundo, desembarcavam navios mercantes que levavam produtos à Europa. Hoje estavam por lá poucos barcos, os carros contornavam toda aquela água para confrontar as famosas três grandes torres da Patagónia Chilena.
No primeiro dia conheci as lagoas e as cascatas do parque natural mas tinha sempre o olhar fisgado naquelas monumentais estruturas que ali permaneciam de forma sobranceira como quem queria mostrar que seria difícil lá chegar. No dia seguinte, pus-me a caminho. Alertaram-me para a dificuldade da caminhada e das subidas mas estava um dia bonito para caminhar. O vento tinha acalmado, as nuvens desvaneceram-se e o Sol brilhou para todos. Para os que subiam e para os que ficaram para trás.
Caminhava com o meu guia. Seguia copiosamente os seus passos. Ele fazia aquilo três vezes por semana.
- Pero me canso igual. – dizia Fernando, o guia, tentando dar alguma esperança aos meus já moídos joelhos.
Nas subidas mais inclinadas, o peso da mochila mostrava-se mais acentuado. Havia que desviar dos galhos inesperados, fintar rochas acidentais e não perder o foco na montanha. As torres aproximavam-se a cada passo. Pareciam cada vez mais perto. Mas o “mais perto” era relativo. Tínhamos ainda boas horas de caminho pela frente. O último quilómetro foi o mais complicado. Uma subida abrupta e custosa fez-nos questionar tudo aquilo. Porquê? Para quê? Porque não ficar quieto? Tenho o coração a sair-me pela boca. Não faz sentido. Mas há sempre uma recompensa.
Dobrada a última esquina improvisada por sólidos pedregulhos, dou de caras com as famosas Torres Del Paine totalmente descobertas. Na sua base, a tranquila lagoa sem nome. Eu não queria acreditar quando ali me sentei a contemplar. Seria verdade tudo aquilo? O fim e o início da jornada são sempre próximos, a jornada em si é que demora. É assim em tudo na vida. Demorou, custou, mas ao chegar, tal como as nuvens não marcavam presença, as dores no corpo também não. Tudo aquilo desaparecera por momentos. Por ali fiquei, duas horas, em silêncio. Podemos ser reféns das nossas palavras mas seremos sempre donos dos nossos silêncios. Que coisa bonita aquela que me estava na frente dos olhos.
Dias mais tarde acabei por fazer outras caminhadas, já do lado da Patagónia Argentina. Num dia conheci o Perito Moreno, tendo ficado a dormir em El Calafate, no outro, subi até à Laguna Torre em El Chaltén, uma sossegada cidade com menos de dois mil habitantes. Naquela manhã cinzenta, havia muito por onde caminhar e pouco tempo para o fazer. Umas caminhadas de dez horas, outras de cinco e outras de duas. Estava cansado e confesso que com alguma saudade do comodismo. Ia optar por uma caminhada de duas horas até chegar a uma cascata. Perdi-me e vim dar ao trilho da Laguna Torre, oito horas, dezoito quilómetros. Assumi!, já que ali estava. Voltei a dar de caras com uma lagoa monstruosamente deslumbrante. Voltei a questionar a veracidade do que ali me aparecera. Isto existe mesmo? No meio de tantas mentiras, Deus tinha-me trocado as voltas. Pôs-me noutro caminho de propósito para que eu hoje possa entender tudo isto como uma verdade absoluta: “quando achar que não vai dar... vai dar”.
Ao regressar, a última pessoa com quem falei antes de entrar no avião para Portugal foi um taxista que me levara até ao aeroporto. Perguntou-me se me tinha apaixonado pela Patagónia. Respondi-lhe que sim, mas que havia que voltar para casa. Ele sorriu, dando-me claramente a entender que existem as paixões verdadeiras e as outras. Ao sair, deu-me a mochila e disse:
- Qué tengas una buena vida!
Naquele segundo, ele não mentiu.
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