Atualmente parece impossível fugir ao sucesso de Baby Reindeer, a mini-série da Netflix. O criador, Richard Gadd, dá a cara e relata, na primeira pessoa, uma história que viveu, assumindo o papel da personagem principal. A história é apresentada inicialmente como um caso de stalking de uma mulher contra o próprio Gadd, que na série assume a personagem Donny Dunn. A narrativa da perseguição e importunação é o mote para explorar uma narrativa repleta de nuances e subtilezas que, aos poucos, vai revelando um enredo bem mais complexo, com situações de violência sexual contra homens.
A série é impactante e em vários momentos pode ser desconfortável de ver. Para vítimas de stalking e de violência sexual, pode mesmo intensificar sofrimento ou gerar mal-estar (razão pela qual a Quebrar o Silêncio emitiu um alerta para apelar ao autocuidado dos sobreviventes que visualizem a série). A série também parece ser bastante honesta, no sentido em que Gadd não apresenta uma versão santificada de si próprio, em que cumpre um guião imaculado. Ou seja, para algumas pessoas, a personagem Donny Dunn não encarna uma vítima “real”, ao comportar-se de forma incoerente, quase aleatória, e que parece assumir uma parte ativa na própria vitimação. Face a esta representação, poderá haver quem questione se ele próprio não terá precipitado alguns dos eventos ou se algumas das situações seriam realmente configuradas como violência sexual. Este é um dos pontos-chave da série: os comportamentos e reflexões de Dunn sobre as suas ações podem ser o ponto de partida para encetar reflexões interessantes sobre violência sexual.
O que é identificado como abuso sexual de homens?
Este é um dos pontos da série que sinto necessidade de problematizar. (Alerta de spoilers) No início de um determinado episódio, surge uma advertência sobre a existência de representações de violência sexual. Porém, no episódio anterior já haviam mostrado uma situação de abuso sexual, mas que não mereceu o mesmo aviso. Da minha parte, penso que seja natural questionar esta decisão. Um homem que viola outro é obviamente identificado como crime de violência sexual, mas a cena em que uma mulher encosta um homem contra a parede antes de o “masturbar”, já não é visto do mesmo modo. Esta última cena é, para mim, particularmente importante, uma vez que podemos discursar sobre vários mitos em relação à violência sexual contra homens. Existe o mito de que os homens não podem ser vítimas de abuso sexual; a crença de que as mulheres não podem abusar de um homem (nestes casos os sobreviventes não são identificados como vítimas, mas vistos, erradamente, como sortudos); ou a ideia errada de que quando uma vítima paralisa é porque consente o abuso, e por isso é sexo e não crime. Podia referir mais mitos — como por exemplo, os homens conseguem defender-se contra uma mulher, ou se têm ereção é porque desejam o abuso — mas temo que se elencasse mais mitos este artigo não terminaria.
História pessoal ou uma retrato realista sobre violência sexual?
É preciso ter algum cuidado ao analisar e refletir sobre Baby Reindeer. Esta é a forma como Richard Gadd decidiu contar a sua história e, enquanto sobrevivente, está no direito de decidir o que conta e como o faz (há quem considere, por exemplo, que a história deveria começar com a violação e não com o caso de stalking). Por isso é necessário ter alguns cuidados. Por ser a narrativa pessoal de Gadd, não podemos generalizar os eventos retratados na série e estendê-los a outros homens sobreviventes, como se todos os casos fossem iguais — não o são. No entanto, podemos identificar quais os pontos em comum e discorrer sobre o que é violência sexual, trauma e quais as consequências na vida das vítimas.
Após a violação, a personagem de Donny Dunn continua a relacionar-se com o violador e mantém as idas ao apartamento de um homem que continua a abusar dele. Para quem não tem conhecimento sobre trauma e abuso sexual, este pode ser um comportamento no mínimo estranho, incoerente e até errático, mas não é. Quando dou formação sobre estas matérias, incido num ponto que é absolutamente central: o trauma afeta cada vítima de uma forma única e pessoal, e não existe um guião que as vítimas devam seguir escrupulosamente. Há vítimas que cortam contacto com o abusador, mas também há vítimas que não o fazem e estão no seu direito. Há vítimas que denunciam o crime, e outras que não o fazem; e os motivos são diversos e são todos válidos. Há vítimas que procuram apoio psicológico e há vítimas que não desejam falar sobre o que lhes aconteceu. A realidade é bastante diversificada, mas o importante é reter a ideia de que quando se fala sobre violência sexual, não há espaço para juízos de valor em relação à forma como as vítimas reagem ao abuso e se comportam após a vitimação.
Na série, após a violação, vemos Dunn a ter problemas de intimidade com a companheira, ao mesmo tempo que enceta uma fase hiperssexualizada na qual mantém comportamentos sexualizados (auto punitivos) com homens, mulheres e outras pessoas. Nada sobre a violência sexual é simples, e neste ponto Richard Gadd consegue exemplificar como estes casos podem afetar as vítimas nas diversas esferas das suas vidas, ao mesmo tempo que, aos olhos das outras pessoas, possa parecer que “está tudo bem”.
Baby Reindeer é uma boa série. Pessoalmente gostei bastante e acho um recurso importante sobre estes temas, nomeadamente sobre violência sexual contra homens, mas não creio que seja um documentário no sentido factual dos eventos. É a verdade de Gadd, numa apresentação crua e honesta, e, só por isso, é uma série que merece ser vista. Ajuda-nos a compreender a complexidade destas matérias e como as vítimas podem ver as suas vidas afetadas pela violência sexual. A história de Gadd é a história de muitos homens e que têm vários pontos em comum com tantos outros sobreviventes, mas é importante termos presente que cada vítima é uma pessoa que reage de forma única.
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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.
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