Cá pela Europa velha e cheia de línguas, tendemos a olhar para os nossos primos além-Atlântico como um país muito, digamos assim, monolingue. Enfim, sabemos que há por lá quem fale espanhol, mas será a excepção que confirma uma paisagem linguística muito monótona.
A realidade é sempre mais interessante que os nossos simplismos. Basta pensar que Nova Iorque, a cidade mais importante nesse território imaginariamente monolingue, é provavelmente o território do mundo com maior densidade de línguas diferentes.
Mas há mais. Para começar, os Estados Unidos não têm uma língua oficial — nada na Constituição ou na lei afirma que o inglês é a língua dos Estados Unidos. Não é nada de extraordinário: o Reino Unido também não tem língua oficial. Aliás, tecnicamente, o inglês é língua oficial da União Europeia, mas não é nem do Reino Unido nem dos Estados Unidos...
Que o governo federal dos EUA não tem uma língua oficial é daquelas curiosidades técnicas com pouca relevância prática. Mais interessante é pensar que há vários estados dos EUA com outras línguas oficiais. O Havai tem o inglês e o havaiano como línguas oficiais. O Dacota do Sul reconhece o inglês e o sioux como línguas oficiais. Há mais uns quantos casos aqui e ali...
Se o inglês é a língua mais importante, o espanhol (por lá, ninguém usa o correspondente inglês à nossa palavra «castelhano») é, de longe, a segunda língua dos EUA. A sua importância por lá é subestimada por muitos portugueses. Vemos o espanhol em muitos contextos (é fácil encontrar boletins de voto em inglês e espanhol) e é língua materna de larguíssimos milhões de norte-americanos. Há, provavelmente, mais falantes de espanhol nos EUA do que em Espanha... Existe, mesmo, uma Academia Norteamericana de la Lengua Española, que é tida em conta, em pé de igualdade, em todas as discussões sobre a norma da língua em que participam as academias dos vários países de língua castelhana.
Há mais línguas europeias presentes nos EUA: há um dialecto do alemão falado no Texas; há uma localidade do Maine em que a maioria da população fala francês; chama-se — surpresa! — Frenchville. O francês tem também um papel importante na Luisiana — o francês, ou melhor, os crioulos de origem francesa, a revelar nas línguas que ouvimos a história da escravatura no Atlântico Norte. Estes são apenas exemplos: há mais bolsas de línguas europeias e crioulos espalhadas pelo país.
Depois, temos as línguas dos nativos norte-americanos, faladas no continente antes de os europeus lá chegarem. São ainda centenas e interessantíssimas, tão longe que estão das nossas línguas do Velho Mundo.
Olhemos, por exemplo, para o navajo. Esta é uma língua famosa: não só é falada por uma das tribos mais conhecidas dos EUA, como foi usada como código de comunicação durante a II Guerra Mundial, mantendo-se indecifrável pelos alemães. Tem uma característica curiosa: os verbos são extraordinariamente complexos. Aliás, alguns linguistas consideram que os verbos desta língua são todos irregulares. Nenhum deles segue uma tabela de conjugação.
Os verbos irregulares são umas palavras malcomportadas, que têm umas regras a cumprir e dão-se ao luxo de as ignorar só porque sim. O inglês, por exemplo, tem as suas regras de formação do passado, com o «ed», mas depois lá vêm os verbos irregulares trocar-nos as voltas, rindo-se de nós, pobres aprendizes de línguas estrangeiras: «ah, connosco tens mesmo de decorar». E ficamos com os “drank”, “sang”, “put” e outros que tais.
As crianças não têm qualquer problema em aprender os verbos irregulares da sua própria língua: dão um ou outro tropeção inicial e depois nunca mais se lembram do problema. Tanto assim é que é muito difícil para qualquer um de nós dizer quais são os verbos irregulares da nossa própria língua. O cérebro das crianças aprende qualquer língua, independentemente da complexidade.
E, de facto, as crianças que aprendem navajo como língua materna não notam que haja alguma coisa de diferente na sua língua. Já os adultos que se atrevem a aprender esta velha língua índia vêem-se a braços com uma tarefa digna dum Hércules das línguas...
Não me vou pôr aqui a ensinar verbos em navajo — até porque não os sei —, mas deixo a lista dos números nessa língua, que nos dá uma imagem de quão diferente é este idioma, falado há milhares e milhares de anos no continente americano:
- tʼááłáʼí
- naaki
- tááʼ
- dį́į́ʼ
- ashdlaʼ
- hastą́ą́
- tsostsʼid
- tseebíí
- náhástʼéí
- neeznáá
(Para saber mais sobre o navajo e não só, recomendo a leitura de What Language Is, do linguista norte-americano John McWhorter.)
Há quem não goste assim tanto desta diversidade linguística. Um país a funcionar numa só língua seria, para essas pessoas, mais pacífico. Digo isto: se olharmos para os grandes conflitos que estiverem bem visíveis nesta semana por aqueles lados, vemos que não é preciso falar línguas diferentes para viver em mundos muito diferentes. É fácil encontrar dois norte-americanos a falar a mesmíssima língua e a viver em realidades diferentes, com vencedores distintos para a mesma eleição. Não tenho solução para esse problema. Mas permitam-me só lembrar que, por trás de todos os simplismos com que vemos os outros países (e, em muitos dias, o nosso próprio país), esconde-se uma complexidade tremenda, nas línguas e em tudo o resto.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos.
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