Há quase dez anos, o cirurgião Eduardo Barroso berrava “Deixe-me acabar!” a Fernando Seara, em plena televisão por cabo, no programa Prolongamento. Esta semana, assistimos ao princípio do fim desse tipo de formatos. A SIC e a TVI decidiram acabar com os painéis de adeptos dos três grandes nos seus canais informativos e a decisão tem sido recebida com elogios.

Não há dúvidas que muitos dos conteúdos futebolísticos nos canais de informação prejudicam, lá está, a informação. A partir do momento em que as televisões não acompanham em directo o Conselho Europeu que municiou o Estado português de milhares de milhões para distribuir pela economia, mas têm uma equipa de reportagem no terminal de aeroporto onde vai pousar a aeronave que transporta um treinador, o papel do jornalismo na democracia está em causa. Não só porque a informação relevante para as pessoas decidirem não chega na plenitude ao cidadão, como a futebolização da televisão foi também contribuindo para a futebolização da democracia.

O caso mais descarado parte de um canal que, até agora, parece querer manter estes formatos que agora caem em desgraça. O sucesso de André Ventura não é por acaso. Não foi pela candidatura autárquica apoiada pelo PSD - um erro grave que o partido pagará mais tarde; nem pelo comentário a casos judiciais na mesma estação que Ventura ganhou reconhecimento. Foi o comentário clubístico acéfalo, anti-desportivo e propagandista que tinha na CMTV todas as semanas que o nome de Ventura começou a ser familiar aos portugueses.

Para quem não gosta de futebol, é fácil e compreensível considerar estes programas todos iguais e equitativamente deploráveis, um óbvio desperdício de tempo de antena. Mas a verdade é que nem sempre foram o lamaçal que hoje conhecemos. Apesar de sempre contarem com picardia, desaforo e a ocasional falta de respeito, tudo mudou quando as televisões aceitaram substituir adeptos mais ou menos livres por funcionários das máquinas de propaganda dos clubes. Situo a mudança de paradigma talvez em 2014. A CMTV tinha surgido no mercado, as direcções de informação começavam a transformar os canais de notícias em canais de notícias futebolísticas, os três grandes eram presididos por entusiastas da guerrilha de informação.

Não há dúvida que certos programas, na sua fórmula atual, deviam acabar. Mas parece-me difícil crer que as direções de informação não tivessem em mãos o poder de reconfiguração. Dificilmente se acredita que os diretores não sabiam quem recebia a cartilha, metonímia para as versões da realidade que a comunicação oficial dos clubes queriam propagandear. A decisão de ontem - que me parece conjunta - da SIC e da TVI de acabar com os programas desportivos com representantes de clubes tem um lado meritório, mas também serve para alijar responsabilidades, pondo o ónus da tal toxicidade primeiro nos adeptos, depois nos clubes e, por fim, no desporto - como se as televisões não tivessem promovido, lucrado e tido mais do que tempo para alterarem o tom dos programas.

Se o argumento for retirar programas de adeptos porque são apenas ruído, nada acrescentam ao futebol e não veiculam informações relevantes para o público - e que o tempo que ocupavam seja preenchido por hard news -, tudo bem. Se o plano for substituir os programas de futebol de duas horas e meia por magazines de desporto mais curtos, assertivos e informativos, tudo certo. Agora, se o objectivo for repor estes formatos com painéis de pseudo-independentes, com a mesma duração, o mesmo sequestro do espaço mediático, os mesmos temas, a mesma estultificação do espectador, teremos resolvido zero problemas. Talvez seja mais difícil identificar águias, leões e dragões, mas facilmente nos lembraremos d’O Leopardo. Isto é, da frase mais conhecida da obra de Tomasi di Lampedusa, filmada por Visconti: “se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”.

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