Recep Tayyip Erdogan lançou-se para o topo do poder de Estado na Turquia, primeiro como chefe do governo, depois como presidente da República, na sequência do devastador terramoto que em 1999 causou destruição tremenda e mais de 17 mil mortos na região de Izmir e Istambul. Agora, os escombros políticos de um terramoto ainda mais devastador, ameaçam colocar Erdogan no plano inclinado descendente e afastá-lo da reeleição presidencial. O luto está a converter-se em fúria.
Erdogan era presidente do município da grande cidade de Istambul quando aconteceu o terramoto de 99. A resposta do Estado turco a esse terramoto ficou exposta a severas críticas generalizadas, porque não acudiu às pessoas que precisavam de apoio e, pelo contrário, deixou que crescesse uma crise financeira, económica e social que atirou milhões de cidadãos para a miséria. A revolta popular cresceu com denúncias de canalização do grosso dos financiamentos para o poderoso setor imobiliário, por entre muitas suspeitas de corrupção. Erdogan encabeçou os protestos e o partido AKP, liderado por ele, venceu as eleições parlamentares de novembro de 2002 com quase 11 milhões de votos (34,3%), quase o dobro do alcançado pelo partido rival. Erdogan foi investido como primeiro-ministro em março de 2003, permaneceu no cargo por 11 anos, até 2014, quando foi eleito presidente, com 21 milhões de votos (51,7%).
A chegada de Erdogan à chefia do governo turco coincidiu com a entrada de legislação avançada sobre segurança anti-sísmica. Para financiar essa transformação, todos os proprietários na Turquia ficaram obrigados ao pagamento de um novo imposto, como taxa para a segurança anti-sísmica. O governo de Ancara tem recebido em liras turcas o equivalente a milhares de milhões de euros. Mas, agora, quando o terramoto voltou a sacudir a Turquia, desmoronaram-se, tanto prédios antigos como prédios novos. É facto que o terramoto foi violento. Mas, por exemplo, o Japão também sofre abalos brutais e os prédios não caem assim.
Engenheiros, arquitetos e outros peritos estão a dar a explicação: o imposto anti-sísmico não foi aplicado no robustecimento de casas antigas e não foi verificado o cumprimento da lei sobre segurança nas novas construções. Há grandes torres de apartamentos, com 12, e mais, andares, construídas nos últimos seis anos, que se desmoronaram. Há novos bairros residenciais de construção recente que tombaram em cadeia como se fossem peças de um dominó.
O imposto anti-sísmico pago pelos turcos – mais de 4 mil milhões de euros - não foi dedicado à proteção dos turcos. E a falha está por inteiro nos 20 anos que o “sultão” Erdogan leva até agora à cabeça do poder na Turquia.
Esta passa a ser a maior indignação popular contra Erdogan – soma-se à crise económica (inflação anual de 42%) e financeira que Erdogan tem tentado contornar com medidas populistas que levam o governador do banco central a deitar as mãos à cabeça pelo disparo da dívida pública. O futuro da Turquia está a ficar hipotecado pelo eleitoralismo de Erdogan, que despreza a ideia de contas certas.
Cresce o número de cidadãos turcos que estão a perder confiança no líder que se tem apresentado como o pai que a todos protege.
Muito do povo turco sabe que o regime não cultiva princípios morais básicos.
Erdogan é um populista autoritário. Comanda um país que é membro da NATO mas ele é mais amigo de Putin do que de Biden e de qualquer dos líderes ocidentais. Tem sido hábil a cultivar boas relações com as autocracias do Médio Oriente. Serve-se dessa proximidade para ganhar peso negocial dentro da NATO. Permite-se bloquear a entrada da democracia sueca na Aliança Atlântica. Usa a proximidade com Putin para aparecer como o líder que consegue abrir corredores humanitários para circulação dos cereais da Ucrânia que alimentam meio mundo.
Ele é capaz de algum pragmatismo, mas a Turquia de Erdogan não é um Estado de Direito. Não há justiça independente nem liberdade de imprensa. A censura e a repressão leva a que muita gente não se atreva a levantar a voz contra o regime. As cadeias estão cheias de dissidentes.
Muitos dos mais prestigiados juízes, advogados e jornalistas optaram pelo exílio.
Há, agora, sinais evidentes de que a revolta contra o modelo que não protegeu a vida de dezenas de milhar de turcos está a impor-se ao medo instalado pelo regime. Até os media mais dóceis estão a espelhar a fúria popular. A maquinaria de propaganda de Erdogan vai ter dificuldade em voltar a controlar pessoas revoltadas por terem perdido tantos familiares e amigos.
É facto que Erdogan já está a prometer rios de dinheiro para tentar recuperar os revoltados: sobe o salário mínimo, paga dívidas a quem está mais desesperado, oferece reforma antecipada a dois milhões de pessoas, anuncia centenas de milhar de novas residências construídas com proteção sísmica. Vai dar 10.000 liras turcas, quase 500 euros, a cada vítima do terramoto. É o que já prometeu. As finanças turcas não têm recursos para tantos encargos mas Erdogan percebeu que precisa de jogar tudo para tentar salvar a presidência.
Ele tinha marcado eleição presidencial para 14 de maio. Agora, provavelmente, vai querer adiá-las.
Antes do terramoto, Erdogan já tinha concorrência forte.
O atual presidente da câmara de Istambul, Ekren Imamoglu, tem fortes simpatias e é uma ameaça tão séria para Erdogan que este o quer prender. Conseguiu que Imamoglu fosse condenado a dois anos de prisão por “insultos” à Junta Eleitoral, espécie de Comissão Nacional de Eleições. Porém, a lei concede prazos para os recursos que Imamoglu interpôs e que, apesar das pressas do regime, demoram o veredicto final. Para o que der e vier a gente de Erdogan já estava a preparar contra Imamoglu acusações de “apoio ao terrorismo”, por ter contactos com gente da oposição declarada fora da lei.
Imamoglu tem percorrido a Turquia em concorridos comícios. Promete o regresso ao parlamentarismo e o fim do poder absoluto do presidente. Erdogan faz tudo para o desprestigiar – incluindo pretender pô-lo na cadeia.
Mas há um outro líder a emergir na oposição. É Kemal Kilicdoroglu, líder do maior partido da oposição e antigo aliado de Erdogan. Já abriu o ataque ao atual presidente pelo desastre no socorro às vítimas do terramoto. Lidera uma coligação sem precedentes de todos os seis principais partidos da oposição, já definiram o programa, só falta anunciar o candidato. Estão a gerir o calendário para anunciarem Imamoglu ou Kilicdoroglu.
Erdogan vai recorrer a tudo para se manter no poder. Há quem admita que ele pode forçar uma crise com o Ocidente para conquistar o orgulho nacionalista dos turcos como trunfo eleitoral.
Os terramotos são imprevisíveis. O mesmo acontece com o futuro de um país que está no epicentro geopolítico da tensão entre Ocidente e Oriente.
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