O que era notícia há um ano? A pergunta foi-me colocada em conversa pelo nosso cronista José Couto Nogueira. Estávamos em junho. A resposta não tardou: Incêndios em Pedrógão. O exercício de memória tinha como objetivo exemplificar como hoje a informação tem tanto urgente como de efémera. Mas aquela noite trágica tomou-nos de assalto. Como falar de Pedrógão sem explorar a dor, sem ornar as chamas. A inquietação de quem relata porque há nisso um dever maior. E porque, como escreveu José Mário Branco, “ensinas-me a fazer tantas perguntas / na volta das respostas que eu trazia”, a mesma inquietação quatro meses mais tarde, quando o país se tornaria mais negro e inevitavelmente mais pobre.
No dia em que o SAPO24 celebra dois anos enquanto projeto editorial da MadreMedia, este recuo é uma viagem plena de inquietações — aquelas que nos tornam melhores porque nos obrigam a questionar, discordar, questionar, acertar, errar, questionar, com a humildade de quem se propõe fazer este exercício uma e outra vez porque é a única forma de se ser melhor hoje do que ontem. Uma inquietação que constrói mas não reprime.
Foi também numa noite deste verão, que se viria a revelar quente e fatídico, que nos lançámos de cabeça ao desafio de fazer a primeira emissão online da noite autárquica. Cinco horas em direto, com uma equipa fixa que, à data, se alinhou em campo sabendo que fora das quatro linhas não havia suplentes.
Cinco painéis de comentadores, ligações ao exterior e à redação, um acompanhamento online e em direto, num estúdio de esferovite construído semanas antes, quando jornalistas, editores e chefias deitaram mãos à obra para pintar, estender tapetes, arrastar cabos, mudar mesas, encomendar ‘sandes’, contratar intérpretes de língua gestual — porque a democracia se faz com todos. Pensamos como equipa, trabalhamos em equipa. Nessa primeira noite de outubro juntaram-se a nós os cronistas que tornam este 24 mais plural, os jornalistas que tornam este 24 mais sénior, a equipa técnica do SAPO que é garante da forma e do alcance de todas estas vozes. Já não éramos onze, éramos um clube, e mais de 600 mil pessoas assomaram às bancadas online para nos acompanhar numa noite eleitoral em que a atualidade não podia passar ao lado do referendo que acontecia na Catalunha.
Sim, cometemos erros, como aliás seria de esperar numa incursão de estreia. Mas não desistimos. Porque nesta equipa não houve um só que ficasse em casa, por dever e por querer. Hoje, o conto é de vitória, mas a viagem foi de outras (tantas) inquietações, porque a atenção é um bem disputado e o espaço mediático é, antes de mais, um espaço de responsabilidade. Por isso, não é com leveza que o ocupamos.
Entre os que alinharam connosco nessa noite estava Pedro Rolo Duarte, de sorriso pronto, análise arguta, comunicador nato. O Pedro era um de nós e não estávamos preparados para a despedida que se impôs no final do mês seguinte. A informação chegou com um push, um serviço de notificações que autorizámos em algum momento que invadisse o nosso telemóvel e, por isso mesmo, a nossa vida. Tantas mortes já noticiámos… abrimos o artigo, colocamos em atualização, acrescentamos informação à medida que esta vai sendo apurada. Partilhamos nas redes sociais, destacamos no nosso site, enviamos nós mesmos uma notificação para dizer ao mundo o que acaba de acontecer…
Desta vez, não. Porque a urgência não escusa a humanidade. Informámos a equipa e ligámos à família para fazer a pergunta que se impõe. Mas como é que se começa um telefonema como este? Quantas chamadas esta família já recebeu para dizer uma e outra vez a mesma coisa, forçada a falar ao mundo num momento que todos sabemos íntimo, para responder: sim, perdemos o Pedro. Só depois escrevemos e publicámos: “Morreu Pedro Rolo Duarte”.
Nesse dia, o mundo que noticiamos feriu-nos. E todos os dias, porque o jornalismo se faz do que é excecional e muitas vezes do que é excecionalmente mau, somos nós quem entra de rompante, quem fere. E a essa inquietação podemos apenas responder com sentido de dever e a responsabilidade de fazer o melhor com aquilo que o contexto nos oferece. Não avançamos com balanços de mortos até serem oficiais — porque mais uma morte é sempre uma morte a mais; não avançamos com rostos e nomes de alegados terroristas até que sejam as autoridades a confirmar essas informações; não colocamos imagens de cadáveres, mesmo que cobertos, em manchete, a não ser que não exista outra forma de relatar a tragédia; não apagamos artigos, corrigimos. Porque a verdade se constrói à medida que a realidade evolui e o contexto muda, mas a transparência, essa, é inegociável numa altura em que tantos se refugiam na sua verdade. Bolhas que podem não estourar com a economia, mas que ameaçam a democracia.
E a nossa própria bolha? O medo de falhar a notícia que nos leva a aceitar comparecer e transmitir conferências de imprensa sem direito a perguntas; A urgência de dar a notícia descurando a análise; A tentação de criticar sem ouvir, relegando para as franjas do palco mediático aqueles (tantos) que nas urnas deixam que o medo dite o voto.
Rebenta a bolha.
Em maio de 2019 a Europa sem Reino Unido vai a votos. A Europa de Matteo Salvini, Viktor Orbán e Sebastian Kurz. A Europa das marchas em Chemnitz contra os imigrantes. A Europa onde a expressão "campos da morte polacos” pode dar direito a três anos de prisão. E a Europa da República Checa que discrimina ciganos e segrega crianças desta etnia nas escolas.
A Europa do Anthony Lopes, do Eduardo, do Rui Patrício, do Cedric, do Vieirinha, do Bruno Alves, do José Fonte, do Pepe, do Ricardo Carvalho, do Eliseu, do Raphael Guerreiro, do André Gomes, do Adrien, do Danilo, do João Mário, do João Moutinho, do William Carvalho, do Renato Sanches, do Cristiano Ronaldo, do Éder, do Nani, do Quaresma, e do Rafa.
Podiam ser outros nomes, mas estes remetem-nos para o dia em que mostrámos que somos mais fortes na diferença, capazes apesar do contexto, resilientes na crítica e vitoriosos por fim.
Nós “Chegámos Lá, Cambada”. Não sem esforço, não sem derrota, como tentámos espelhar em vésperas de Mundial de Futebol no documentário (o nosso primeiro documentário) que fala sobre futebol enquanto espelho de um país em permanente construção.
Ganhámos a Europa em 2016. Mas que país, que Europa e que mundo disputaremos em 2019?
No SAPO24 iremos certamente a jogo. As inquietações? Fazem parte, somos melhores assim. E contamos consigo.
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