O nome Thales de Menezes não era conhecido dos fãs de hip-hop portugueses até há cerca de uma semana. Agora, parece ter-se tornado no inimigo público número um, o alvo a abater pelos cognoscenti do género, homem que não é homem mas demónio vil, devorador de criancinhas. O seu crime? A resenha que escreveu sobre três projetos nacionais que marcaram presença na edição brasileira do Rock In Rio: HMB, Virgul e Carlão, estes dois últimos descritos pela organização do festival como «dois respeitados artistas do rap português». Diz ele que os espetáculos se pautaram pela «ingenuidade», e que quem viu saiu com a sensação de que «o hip-hop português ainda está no jardim de infância». Doeu, claro. Não mediu as suas palavras. Decidiu esbofetear-nos sem aviso prévio. O malandro.
De imediato a tribo ergueu a sua voz e ripostou. «Menezes não sabe do que fala», «o nosso hip-hop é excelente», coisas assim, muito resumidamente falando. Era só o que faltava, como diria Luiz Felipe Scolari, alguém atacar os mininos. Era só o que faltava – nós, portugueses, somos um povo triste e auto-depreciativo, mas se vier alguém de fora achincalhar o nosso produto, cai o carmo e a trindade. Um ataque a um de nós é um ataque a todos nós. Um por todos e todos por um.
O problema com esse contra-ataque, que roçou o patriotismo bafiento e bacoco por parte de gente estranhamente insegura, é que Thales de Menezes tem uma certa razão. Não a tem toda porque, como já foi muito bem explicado pelos defensores do hip-hop tuga, o jornalista da Folha de S. Paulo partiu de uma amostra reduzida para avaliar a cena no seu todo. Mas, sejamos honestos: se eu fosse brasileiro e tivesse de levar com os HMB, com Virgul e com um Carlão muito longe dos seus momentos áureos nos Da Weasel, também pensaria que o hip-hop em Portugal é miserável. Claro que existe outro argumento, o de que a música brasileira, e sua comprovada riqueza, não pode ser reduzida a um concerto de Ivete Sangalo (se bem que Ivete Sangalo seja, numa perspetiva pop, infinitamente mais interessante que o funk anódino dos HMB ou que as rimas e batidas pseudo-românticas e boa onda do Virgul de “Rainha”, que só fascinam quem ainda tem paciência para ir ao Sumol Summer Fest ou ao Sudoeste).
O hip-hop português, caro Thales, não está no jardim de infância. Mas, caros camaradas portugueses, está ainda no liceu. Um liceu que parece saído de filme ou telenovela, com as suas cliques bem definidas. De um lado, os veteranos, muitas vezes tranvestidos de bullies: são eles que dominam a escola (ou o discurso hip-hop, não se percam na analogia) e que, como eucaliptos, secam tudo em seu redor. Porque nos merecem respeito – sabe-se lá porquê –, porque já o faziam antes, porque foram pioneiros na arte do maltratanço. São os nomes que enviamos lá para fora quando queremos provar alguma coisa: Boss AC, Sam The Kid, Valete, Carlão, Chullage, Dealema, etc., etc...
Os veteranos, ou bullies, são os equivalentes do hip-hop aos “dinossauros” do rock; se é preciso representar todo um género, vai lá um deles e está feito. Não há cá espaço para atitudes novas, maneiras genuínas de fazer as coisas ou para uma evolução na linguagem. Para quê consertar o que já era bom? (Spoiler alert: nunca foi.) E aqui reside o grande problema do hip-hop em Portugal, que é também o grande problema da música feita em Portugal: se és um artista novo, a não ser que tenhas os contactos certos, esquece. No caso do hip-hop, um género que procurou sempre ir mais além deixando para trás os seus dinossauros, isso é ainda mais notório.
Olhem para a América, onde o hip-hop nasceu: já ninguém se lembra dos Sugarhill Gang, pioneiros na arte de cruzar rimas e samples. Já ninguém liga aos Run-D.M.C., a LL Cool J ou sequer aos Public Enemy. Dr. Dre hoje é mais conhecido por vender auscultadores que por ter criado (a genial) “Nuthin' But a 'G' Thang”. Tupac Shakur e Notorious B.I.G. são mártires, mas não são escutados. E 50 Cent, que no início do milénio era rei e senhor, perdeu-se em bancarrota. O trono vai sempre mudando. O rei é deposto e um novo é condecorado em seu lugar, sem cerimónias. Já foram reis os supracitados, Kanye West perdeu a coroa para Kendrick Lamar e este tem agora a forte concorrência de nomes como Future ou Migos. Não é assim que funciona a evolução?
Isto não acontece no hip-hop português; aos bullies seguem-se os “renegados”, aqueles que por mais que tentem irão sempre passar a sua adolescência escolar postos e olhados de lado. São os que se vestem de negro e respiram ares narcóticos, como Allen Halloween. São os geeks à procura de novas tecnologias e modos de se experimentar, como boa parte do coletivo Monster Jinx. São os poetas como Keso ou javardolas como os Conjunto Corona. São, todos eles, um nicho; nunca poderão alcançar o estatuto de bully porque o ringue de combate está inclinado à partida.
O argumento de Menezes pode ter partido de alguma ignorância mas não deixou de ser um argumento; se os nossos representantes lá fora não são capazes de entregar ao público de fora um produto digno, lamento dizer-vos, ou dizer-nos: a culpa é inteiramente nossa. Porque não soubemos apostar naquilo que tem qualidade em vez de quantidade, porque cedemos às tentações do mercado e dos streams e do bate-boca e dos compadrios, em vez de tentar algo de novo e do qual nos nos pudéssemos orgulhar.
Há uma discussão que tem surgido nos últimos tempos entre críticos e jornalistas culturais: o das críticas negativas, que numa era onde tudo está ao alcance de um clic têm desaparecido. O argumento é o de que, se assim é, não vale a pena estar a cascar no trabalho de outrém; podemos simplesmente ingrá-lo. O resultado é uma enorme consaguinidade no que à crítica ou ao gosto diz respeito, um positivismo cinzento onde o mero ato de falar mal parece uma ignomínia. Nesse aspecto, a reação de Menezes aquilo que viu e ouviu no Rock In Rio, ainda que ignorante e curtíssima, foi um bálsamo. Poderia ter gerado leituras interessantes caso tivesse sido baseada em algo mais. Infelizmente, preferimos combater a ignorância com a mediocridade. Foi pena.
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