Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


A forma como cada uma das pessoas vivenciou a experiência do isolamento ou do confinamento durante a fase pandémica da COVID-19 esteve dependente de uma variedade de fatores: condição social, ocupação profissional, localidade onde reside, condição económico/financeira, etnia, nacionalidade, género, orientação sexual, identidade de género, entre outros.

Durante este período estive em contacto com duas realidades que me permitiram ter uma visão multifacetada da forma como esta pandemia foi vivenciada. Por um lado, enquanto Advogada (focada no Direito Laboral) estive em contacto com Empresas e Pessoas Trabalhadoras de várias áreas. Por outro, enquanto lésbica e vice-presidente da Associação ILGA Portugal tive acesso a uma realidade que pouco se tem falado neste período: a do impacto da COVID-19 na população LGBTI.

Muitas pessoas dirão que a COVID-19 é uma doença que acarreta riscos para todas as pessoas e que não discrimina ninguém em função, nomeadamente, da sua orientação sexual, identidade ou expressão de género e características sexuais; no entanto, é inegável que o impacto que o vírus tem em comunidades marginalizadas é desproporcionalmente superior.

É verdade que muitas das alterações a que as pessoas LGBTI, nomeadamente as trabalhadoras, foram sujeitas no seu quotidiano são comuns à generalidade da população: a obrigatoriedade de ficar em confinamento no seu domicilio (ainda que sem reunirem as condições para o efeito ao nível do conforto, espaço, meios tecnológicos ou segurança); a adaptação a uma nova realidade de prestação de trabalho (em regime de teletrabalho) e às novas exigências das suas entidades empregadoras e, em tantos casos, a necessidade de em simultâneo prestar assistência à família.

Todavia, o impacto dessas alterações pode ser mais marcante para uma população tantas vezes invisível aos olhos das outras pessoas, violentada pela falta de oportunidades e diretos iguais e muito silenciada junto das suas famílias, nos seus círculos de amigos e também nos seus locais de trabalho.

A exigência de distanciamento social ou confinamento (social, porque na realidade e individualmente, ainda na rua podemos continuar individualmente em confinamento) na habitação não tem o mesmo impacto para todas as pessoas. Para muitas pessoas LGBTI o confinamento associado ao surto pandémico obrigou-as a regressar a um sítio de onde sempre quiseram sair: o armário da invisibilidade e silêncio.

A nossa casa deveria ser um espaço de liberdade, de expressão transparente dos nossos pensamentos e sentimentos e de vivência plena da nossa identidade e orientação sexual. Mas para muitas pessoas a casa não é de todo um espaço sinónimo de segurança e liberdade.

E esta é uma realidade particularmente dolorosa e solitária para muitas pessoas LGBTI. Porque são ou foram rejeitadas pelas suas famílias; porque vêm a sua identidade e as suas relações sistematicamente negadas pelas pessoas próximas ou porque simplesmente não podem existir ainda que lá estejam em casa e com o resto da família, resumindo-se as suas vivências a um longo e pesado silêncio.

Por outro lado, não nos podemos esquecer que uma parte da população LGBTI está desempregada, em trabalhos precários, ou vive com recursos financeiros escassos ou instáveis face à precariedade da sua situação profissional. E esta realidade está intimamente ligada com a visibilidade que tantas vezes é negada.

Não obstante os avanços legislativos em matéria laboral (inclusão da proibição de discriminação em razão da orientação sexual (2009) e da identidade de género (2015) no Código de Trabalho, quer no acesso ao emprego, quer na vigência da relação laboral) ainda vivemos numa realidade em que os locais de trabalho não são seguros para todas as pessoas, em que as pessoas trabalhadoras são obrigadas a esconder a sua orientação sexual ou a identidade de colegas e chefias com medo de vivenciarem situações de discriminação (direta ou indireta) ou despedimentos. E acreditem que estes medos são legítimos, porque esta é ainda uma realidade em muitas empresas e entidades.

Saíram esta semana os mais recentes dados do Inquérito LGBTI Europeu, conduzidos pela Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), e não é infelizmente surpreendente que apenas 14% das pessoas LGBTI respondentes em Portugal estejam “fora do armário” no local de trabalho e 57% das pessoas LGBTI evite dar as mãos em público à pessoa que ama. Estamos em 2020, vivemos no 7º país europeu que mais reconhece direitos e protege as pessoas LGBTI – de acordo com o Rainbow Europe Map – e os dados demonstram que há pessoas que continuam com vergonha de quem são e de quem amam.

Apesar dos progressos feitos nos últimos anos, o confinamento e isolamento social imposto às pessoas LGBTI é ainda uma realidade que perdura fora da situação gerada pela pandemia. É precisamente desse confinamento e isolamento que muitas pessoas LGBTI querem sair e fazem por sair ao longo das suas vidas, travando aí as suas maiores batalhas.

Por isso afirmo: não tenhamos dúvidas de que o medo, o stress e o isolamento a que muitas pessoas LGBTI foram (e ainda estão) sujeitas neste período terá consequências graves a longo prazo na sua saúde mental, não tenhamos dúvidas que o confinamento obrigatório dos últimos meses enviou muitas pessoas LGBTI novamente para “dentro do armário” e não tenhamos igualmente dúvidas de que as pessoas trabalhadoras LGBTI, tendo sido particularmente afetadas pela crise em que nos encontramos, viram aumentar a sua vulnerabilidade social e precariedade.

No momento em que nos encontramos a preparar a entrada na segunda fase do “desconfinamento” é importante ter em consideração as especificidades da cada comunidade, nomeadamente da LGBTI e proceder à criação de mecanismos de apoio e proteção específicos para ir ao encontro das necessidades em concreto que foram detetadas ou que irão sugerir.

Quando estava a (tentar) redigir este texto e fui assolada por dúvidas quanto ao seu conteúdo uma pessoa amiga disse-me: “Usa a tua voz enquanto advogada, ativista e mulher lésbica”. Hoje, dia 17 de Maio, assinala-se o Dia (Inter)Nacional da Luta Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia e cá estou eu a usar a minha voz (e a pedir para se juntarem a mim!) para chamar a atenção para aquela que é (ou foi) uma realidade para tantas pessoas LGBTI neste período e que precisarão, “no regresso à normalidade”, de melhores condições de trabalho, de mais segurança e de mais igualdade.

Nota: a autora deste texto escreve com linguagem inclusiva, sem utilização do binário linguístico o/a ou supostos plurais neutros masculinos.

*Joana Cadete Pires escreve segundo o antigo acordo ortográfico

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