Escrevo esta crónica a 7 de outubro, o relógio do computador portátil marca as 18h10, o que significa que faltam alguns minutos para embarcar no avião que me levará desde a ilha do Pico até à  ilha de São Miguel, nos Açores. Quando digo que o avião me levará até lá, estou a partir do princípio que corre tudo bem e não fico algures no meio do oceano Atlântico, agarrado àquele colete “salva-vidas” que nunca deve ter salvado nenhuma. Chamar-lhe colete salva-vidas é colocar muita pressão no colete, até o colete à prova de bala é mais humilde e sabe que se houver uma explosão ou uma queda de 30 mil pés, não salva vida nenhuma. Seja como for, soprarei no apito com toda a força, enquanto hiperventilo e, na melhor das hipóteses, apenas um golfinho me vai ouvir e confundir com uma golfinha assanhada. Também é possível que o avião me leve a São Miguel, mas aos pedaços, já que a aterragem, juntamente com a descolagem, é onde há mais perigo de acidente e, como todos sabemos, raramente um acidente com um avião é só um toque de parachoques que nem é preciso levar ao mecânico.

Claro que poucas horas antes estive a ler sobre o acidente nos açores em 1999, com este mesmo avião, onde morreu toda a gente a bordo porque bateram de frente com uma montanha. Espero que desde essa altura tenham metido janelas no avião para os pilotos verem para onde vão ou que, apesar da necessidade da inclusão e representatividade, tenham começado a recusar pilotos cegos. Quando digo que era o mesmo avião, refiro-me ao modelo, já que dificilmente um avião que vai contra uma montanha volta a ser usado. Eu conheço um bate-chapas bom, mas duvido que resolvesse o problema.

O relógio marca agora as 19h15 e eu tento que o meu lado racional se sobreponha ao meu lado todo borradinho cada vez que tenho de andar de avião. Mas para piorar a situação, esta é a primeira vez que ando numa aeronave com hélices que mais parece uma carripana onde alguém colou umas asas e umas ventoinhas de teto de um motel de beira de estrada. Eu nunca pensaria em meter uma ventoinha numa tábua de engomar e tentaria voar de minha casa até ao supermercado. Não faz sentido um avião com hélices na era dos motores a jacto. Isto é o mesmo que existir microondas e um gajo continuar a aquecer comida com fogo acendido a bater duas pedras até criar fagulha e incendiar palha. Não é que não resulte e não aqueça de igual forma os restos de lasanha de ontem, mas há sempre mais margem de manobra para correr mal e alguma coisa pegar fogo.

São 18h40. Já embarquei e realmente o termo embarcar faz sentido porque este avião faz-me lembrar um bote. Digamos que este avião parece aqueles carros, que não vou dizer que é o meu ou não, que passam na inspeção por fora, porque alguém paga a alguém para que a coisa aconteça sem problemas. Se tem rodas, está bom para andar. Este parece-me igual. Tem asas, passa na inspeção. Azores Airlines… não desfazendo, mas quando penso nos Açores não penso em aeronáutica nem engenharia aeroespacial. Penso em paisagens, comida e vinho. É por isso que os Açores são conhecidos e nos fazem querer voltar. Azores Airlines é o mesmo que Buraca Technologies. Um gajo desconfia.

O meu lugar é o número 15 e sabem o que isso quer dizer? Nada, absolutamente nada. Os números não dão sorte nem azar e quem acredita nisso espero que lhe nasçam 13 árvores de folha caduca no c* que é para todos os outonos terem de andar a tirar as folhas que ficam entaladas.

Segue-se o jogo da mímica a que chamam regras de segurança e o que fazer em caso de emergência que devia ser apenas gritar ou tentar morrer com dignidade. Aviso já que iria pela primeira opção. Este jogo é ainda mais assustador com o staff a utilizar máscara porque parece que já estamos a meio de uma emergência.

São 18h45 e o avião começa a descolagem.

Estamos no ar. A descolagem correu bem e isto das hélices parece funcionar como forma de contrariar a gravidade. E não há crianças aos berros — o que é um bónus. Há pessoas com o nariz de fora da máscara, obviamente, porque em qualquer aglomerado de mais de 50 pessoas há sempre uma burra, mesmo que seja na nossa festa de aniversário.

Pareço ser o único da minha espécie, o homo sapiens voo cagaris, que a cada barulhinho ou tremelique do avião vira suricata a olhar para todos os lados, à procura de conforto na cara da tripulação (que agora, com máscaras, nem se consegue perceber se vão a sorrir ou a ranger os dentes de pânico). Pareço tranquilo por fora, mas de vez em quando as hélices perdem força e eu morro por dentro um bocadinho e esforço-me para não gritar “Vamos todos morrer!”

O staff todo muito simpático, o que admiro bastante porque se o meu trabalho fosse andar numa lata com asas todos os dias, podiam esperar tudo de mim menos simpatia a não ser que estivesse drunfado constantemente. Vejo água em todo o lado; por isso, se o avião for a cair é só abrir a porta e saltar segundos antes do impacto, penso. Depois lembro-me do senhor Newton e da sua primeira lei e da inércia e essas coisas e percebo que seria como um mosquito a bater no para-brisas de um carro a 300 km/h. Daqueles mosquitos balofos que deixam tudo cheio de nanha e sangue.

São 19h10 e o capitão, que é como quem diz o motorista, anuncia o início da descida e aproximação ao aeroporto João Paulo II. Rio-me da ironia de um ateu com medo de andar de avião ter de confiar que o ex-Papa não deixaria que o seu nome fosse usado num aeroporto onde morre gente.

Aterrei. Inteiro. Obrigado a todos os envolvidos no sucesso desta viagem.

Sugestões: Visitar os Açores que são incríveis e valem a pena o sacrifício mesmo para alguém com medo de andar de avião.

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