A escritora Rita Ferro conta, com a graça que lhe é habitual, num arremesso de boa disposição e imenso humor, que certo dia escreveu uma mensagem escrita “a um senhor padre”, estou a citar, e que o corrector do telemóvel não aceitou a expressão inglesa “mixed feelings” tendo-a substituído por mexidas felinas. A história funciona sempre, todos já fomos ao engano à conta do corrector ou da denominada escrita inteligente. Estava eu na feira do livro a pensar que sentia, precisamente, “mexidas felinas”. Que bom ver as pessoas, na sua maioria de máscara no rosto, a ver os livros, a fazer fila, a desrespeitar um discreto placard que diz que só são permitidas oito pessoas junto ao escaparate com os livros do dia e os outros. Qual oito, qual quê, eram dezenas de pessoas a acotovelarem-se para chegar aos livros em saldo, a dizer ao filho, espera aí um bocadinho, olha, não vás para longe, a tropeçar na senhora da frente, a senhora desculpa, a encostar o braço anelante por determinado volume na direcção das costas de um senhor e por aí fora. Muita gente sedenta de livros, que bom! Tanta gente em cima uns dos outros, que medo!

Mexidas felinas, portanto.

Os livros, os autores, precisam de leitores, precisam de vender os livros, é um negócio que, como tantos outros, sofreu muito com a pandemia, sobretudo com o confinamento. Para terem uma ideia, fizeram-se mais compras online de roupa do que de livros, de gadgets do que de livros, de seja o que for menos livros. As pessoas lêem muito na internet, lêem as gordas, mas já não estão apaixonadas pelo livro, pelas horas de concentração que exige, pelo livro que se sublinha e guarda, que provoca o pensamento, que suscita perguntas. A internet é um grande livro avulso e, para mais, maioritariamente gratuito. Ora, gratuitos são os sonhos e imaginar que a feira do livro seria um encanto de regras e de protecção talvez seja tão ingénuo quanto supor que a Festa do Avante o possa ser, de acordo. O que me aborrece mesmo muito é ver como as pessoas apontam os dedos, se mostram escandalizadas com ajuntamentos, embora depois os façam na sua esfera privada e para isso basta a ir a uma qualquer zona balnear e espreitar os restaurantes pelas nove da noite. Parece que sentados não há vírus? Pois parece. E aborrecem-me as acusações, como me aborrecem as queixas, porque não consigo ver uma alma a propor soluções, a dizer, esqueçam o que foi, não pensem no antigamente, querem vir à feira do livro, pois entram x número de pessoas, mantém-se o distanciamento em prol da saúde pública e controla-se o fluxo das pessoas. Claro que isto implica que tenhamos pessoas treinadas para “controlar”, para fazer o papel chato de dizer, desculpe, mas preciso que se afaste, não pode estar aqui tão perto desta senhora, desculpe, mas precisa de manter o seu filho perto de si e com máscara. E álcool gel em barda, de cinco em cinco metros, ou de dez em dez, mas com instruções obrigatórias, comprou ali um livro, higienize aqui as mãos, mexeu em dinheiro?, higienize as mãos. Haverá alguém que dirá que tudo isto será limitar a liberdade de cada um, e é verdade, acontece que precisamos dessa restrição. Mas nada disto acontece na feira do livro, nada disto acontecerá em qualquer evento e a resposta ao porquê é simples: ninguém paga esse extremo controle que zela pelas nossas vidas. Por tudo isto, eu que amo os livros, celebro os livros, que os compro e dou, que os sublinho e releio, que os escrevo, fiquei a ver as pessoas na feira e senti uma tristeza sem fim. Não vejo solução, o vírus está aí, é invisível, não tem critérios, pode afectar-nos a todos e a vida precisa de continuar. Estes são dias estranhos e ainda não vimos tudo.

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