Fui abusado sexualmente aos 10 anos de idade e durante 20 anos sofri em silêncio, sem nunca ter tido capacidade de partilhar com alguém o que me havia acontecido. Quando tinha 30 anos cruzei-me por acaso com o abusador na rua e entrei em crise. O meu mundo desabou e pela primeira vez, num misto de coragem e desespero, contei a uns amigos que tinha sido abusado. A reação deles foi fundamental e vital no meu processo. Se não tivessem ouvido as minhas palavras, acreditado na minha história, hoje provavelmente estaria morto. E não estou a dramatizar. O peso que carregava em segredo era de tal modo um cancro que a certa altura teria, muito provavelmente, cometido suicídio. Felizmente, tive a sorte de ter tido pessoas que escutaram a minha voz e que me deram o apoio que na altura precisava.

Mas nem sempre foi assim. Durante duas décadas este segredo consumiu-me, foi destruindo a minha vida aos poucos. Cada dia que passava ia corroendo o meu interior, afetando as minhas relações sociais, íntimas e, acima de tudo, a minha relação comigo mesmo. Odiava a criança que eu próprio fora aos 10 anos. Cresci com fortes sentimentos de vergonha e de culpa pelo que acontecera, sentimentos estes que me congelavam sempre que tinha um vislumbre de uma memória suprimida do abuso. Se me tivessem perguntado em criança ou em adolescente se tinha sido abusado sexualmente por aquele homem a resposta teria sido não - um convincente e inabalável não. Eu é que tinha sido o abusador. A manipulação dele foi tão habilmente conseguida que cresci a acreditar que tinha sido eu, com 10 anos, que havia seduzido um homem inocente, ingénuo, imaculado. Que eu, aos 10 anos, era um demónio sexual que tinha manhas e estratégias para corromper uma alma caridosa, que todos amavam e admiravam na comunidade. Que tinha sido eu o criminoso e, como tal, sendo responsável por um crime desumano, jamais poderia abrir a boca e contar o que tinha acontecido. Afinal de contas, quem iria acreditar em mim, uma criança vil e pecaminosa, acusando de forma hedionda o melhor amigo de toda a gente, sempre sorridente, disponível, prestável?

Foi assim que vivi toda a minha a vida até aos 30 anos.

Poderia escrever vários outros parágrafos sobre toda a dor que este homem provocou em mim. Como aparentemente a minha vida parecia normal, por ser um rapaz que escondia a dor atrás de um sorriso, sempre bem-disposto e que era amigo dos amigos, e que afinal estava destruído por dentro. Mas a verdade é que enquanto não compreendermos a complexa endemia da violência sexual, nomeadamente contra crianças, jamais iremos criar as condições necessárias para que as vítimas sintam que podem falar do que lhes aconteceu e partilhar as suas histórias de abuso.

Quando normalmente me perguntam “por que é que os homens demoram tanto tempo até procurar apoio?”, é preciso dar um passo atrás e perceber a extensão do conhecimento que temos sobre esta forma de violência que afeta 1 em cada 5 crianças só na Europa. O mesmo se passa, acredito eu, com as reações ao documentário “Leaving Neverland”, que tem gerado polémica por trazer novas acusações póstumas de abusos sexuais contra crianças por parte de Michael Jackson. Será que, enquanto coletivo, temos as bases para uma discussão construtiva e pedagógica? Não, acredito que não temos. De um lado temos os defensores dos dois homens, Wade Robson e James Safechuck, que deram o seu testemunho; do outro, temos os defensores de Michael Jackson. Parece uma batalha em que o ataque é palpável, ensurdecedor e impede o entendimento. No meio desta discussão, será possível encontrar um terreno que seja comum para podermos avançar? Creio que é quase impossível, mas vamos por partes.

Antes de mais, vou supor que ninguém destas duas “fações” seja a favor da violência sexual contra crianças, ou melhor, que qualquer pessoa que entrou nesta conversa considera que violência sexual é uma violação grave dos direitos humanos. Para mim é este o primeiro ponto para iniciar um debate produtivo. Outro aspeto a ter em conta, é que não existe um património cultural, um conhecimento coletivo sobre como os abusadores chegam às crianças (e às suas famílias) para que todas as pessoas que entram nesta discussão tenham as mesmas bases. Assim, é natural que se discutam os pormenores destes dois casos em específico, por haver detalhes e informações que são, para muitas pessoas, difíceis de compreender e que são (aparentemente) incongruentes. Mas quando nos focamos demasiado em casos concretos, corremos o risco de não compreender como a violência sexual afeta 1 em cada 6 rapazes antes dos 18 anos e em que circunstâncias ocorre esse abuso, como são eles silenciados por anos e porque é que falam a determinada altura da sua vida. Quando a discussão incide exclusivamente sobre um caso específico é preciso parar e posicionar esse mesmo caso no geral. Isto é, é preciso fazer uma análise para que possamos enquadrar se foi uma situação atípica ou se é um caso como tantos outros e quais os pontos em comum que os unem.

Se Wade Robson e James Safechuck tivessem partilhado as suas histórias omitindo a identidade de Michael Jackson e tivessem também omitido algumas informações que facilitassem a sua identificação, será que o público teria tido outra reação? Teria sido mais fácil ouvir e aceitar os seus testemunhos?

Compreendo que para algumas pessoas seja difícil aceitar a ideia de que alguém que admiram e que gostam (seja amigo, familiar ou outra pessoa) cometa um crime grave, como abusar sexualmente de uma criança. Se a pessoa acusada fosse alguém com um histórico duvidoso e um ar suspeito, seria mais fácil aceitar que pudesse abusar de crianças; a narrativa estaria facilitada. Mas quando se trata de alguém que é para nós uma referência, de quem gostamos e admiramos, esta imagem não é de todo coerente com a de um abusador de crianças. E é isto a que assistimos quando há uma recusa em aceitar as acusações contra alguém que tem um status social imaculado. Será necessário fazermos uma longa descrição do processo de manipulação? No meu caso, o homem que abusou de mim era “apenas” um bom vizinho, uma pessoa bem vista na comunidade e conseguiu silenciar-me durante duas décadas. Nem imagino como seria se este homem fosse adorado por milhões de fãs em todo o mundo.

E se acreditássemos nos testemunhos?

E se acreditássemos nos testemunhos? O significaria isso em concreto? A resposta é um processo individual, mas talvez pudesse significar que as pessoas que identificamos e reconhecemos como boas, também podem ter um outro lado “menos bom”. Ninguém é linear, nem apenas bom ou apenas mau, e estes maniqueísmos toldam a nossa visão sobre a complexidade destes temas. Podemos então conviver com a ideia de que alguém de quem gostamos, que adoramos e em quem confiamos possa ter abusado sexualmente de crianças? Compreendo que seja difícil reconhecer esta dualidade e que para algumas pessoas seja mesmo impossível. Por isso, sugiro agora que pensem nas crianças que foram abusadas por alguém que elas próprias gostavam e confiavam. Pensem sobre como isso pode destruir a criança e a forma como ela se relaciona com o mundo e lida com os outros. Como poderá ela confiar noutras pessoas que estabelecem consigo uma relação de proximidade, uma relação de confiança, quando no passado houve alguém que fez o mesmo e que depois abusou delas?

Não é fácil, sei que não é. Mas também sei que estas crianças crescem num mundo de confusão interna, sem saberem bem navegar nas relações que foram sendo construídas. Crianças que se tornam em adultos com um segredo que as consome. Na maioria dos casos, quando os homens sobreviventes de violência sexual na infância procuram o apoio da Quebrar o Silêncio, estão a partilhar as suas histórias pela primeira vez. E não é fácil. Foram anos e anos a sofrer com sentimentos de culpa pelo abuso, apesar de sabermos que o único responsável é o abusador. Mas relembro que não é linear, nada destes processos o é. É preciso desconstruir toda a manipulação que aconteceu, reconhecer que a criança é por natureza vulnerável e está à mercê dos adultos, por mais que o abusador tenha normalizado todo o abuso, o que faz parte do processo para garantir o silêncio da criança.

Pessoalmente, enquanto homem sobrevivente de abuso sexual e enquanto profissional e técnico de apoio à vítima, este documentário apresenta dois testemunhos e revela como não há nada de simples ou fácil no tema da violência sexual contra crianças. Não é por acaso que acompanhamos homens com mais de 60 anos que nunca antes partilharam a sua história, nem mesmo com as pessoas mais próximas ou familiares. Volto a reforçar que o processo de manipulação, por parte dos abusadores, faz com que as crianças sintam que estão envolvidas numa relação e transfere para elas sentimentos de culpa e de vergonha intensa, de tal modo que acreditam muitas vezes que foram elas as responsáveis pelo abuso que sofreram. E por isso devem ficar caladas e nunca, jamais, devem procurar apoio. Por isso ouvimos homens que nos dizem “Será que fui eu, com 6 anos, que quis o abuso? Será que que me expus de um modo sexual? Será que fui eu que de algo modo poderei ter suscitado o interesse sexual dele? Será que fui eu que o seduzi?” Estes são apenas alguns exemplos de como a manipulação afeta realmente a perceção das crianças, e como esta manipulação resulta num longo e doloroso silenciamento.

É preciso deixar bem claro que nenhuma criança pode, de algum modo, dar consentimento, e qualquer contacto sexualizado que aconteça é responsabilidade do adulto. Não há forma de contornar esta realidade. No apoio que prestamos aos homens vítimas de violência sexual, esta é uma pequena parte da nossa realidade. Por isso, apelo à empatia pelo outro, em especial pelas vítimas de violência sexual. Porque nunca sabemos se o nosso irmão, amigo, pai, companheiro foi abusado e pode estar a sofrer em silêncio. Não contribuamos para a manutenção desse silêncio.


Se foi vítima de violência sexual e precisar de apoio contacte a associação Quebrar o Silêncio - apoio especializado para homens vítimas de violência sexual. Contactos: apoio@quebrarosilencio.pt | 910 846 589