Ontem, ao abrir e segurar uma porta para deixar passar uma senhora, por delicadeza, por educação, fiquei no silêncio da ingratidão. Nada de obrigada ou bom dia, nem mesmo um olhar. Perguntei-me, de imediato, se a senhora faria yoga (há um estúdio de yoda no prédio onde coincidimos) e lembrei-me desta frase: não vale a pena fazer yoga se não cumprimentas o porteiro. Como não vale a pena dizermo-nos cristãos e não ter compaixão, solidariedade e outras características que, na teoria, são adequadas ao rótulo. Não vale a pena fazermos meditação, respirarmos profundamente e procurar uma outra dimensão de nós próprios, se depois berramos com as pessoas.

Queremos muito ser politicamente correctos, invocar para nós um patamar qualquer de bondade e dignidade, de civilização e cultura. É pena quando estragamos tudo. Contei este episódio da porta a uma amiga com quem jantei e ela riu-se e disse: "Como o meu ex marido era uma desgraça, ele abria-me a porta e eu refilava a dizer que não sou frágil, que posso abrir as portas". O riso dela era resultado de ter percebido que, por vezes, abrirem-nos a porta serve apenas para se ser gentil, não nos diminui e, sobretudo, não nos pode levar ao silêncio de não reconhecer o gesto.

Hoje de manhã, depois de ter estacionado o carro num parque subterrâneo, vejo um carro a travar com alguma violência para deixar sair de um lugar do parque um outro automóvel. O senhor que ia sair estava claramente distraído, estava ao telefone. O que travou abriu a janela e gritou: "Palhaço!". Imagino que o condutor distraído e a cometer uma infracção clara tenha ignorado, ou nem mesmo ouvido. Sorri-lhe, à laia de compreensão, e ele disse para a pessoa ao seu lado, de tal forma alto que ouvi: "Esta também é parva". Ora, eu, que deveria ter um hashtag a dizer #fartadeserboazinha, mandei-o à outra parte e vim escrever esta crónica a pensar na forma como nos tratamos uns aos outros, na quantidade de energia que desperdiçamos com quem não vale a pena e de como o mundo é, verdadeiramente, uma selva e as pessoas bicolores. Lá está, fazem yoga, não cumprimentam o porteiro.