Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


No início era o romantismo, depois a ansiedade e, por fim, a resignação.

Divido assim os estados emocionais em que esta COVID-19 nos enfiou e como conseguem coexistir atabalhoadamente dentro de nós. Começámos por assumir que este vírus altamente contagioso era uma mensagem maior do planeta e como a oportunidade perfeita de voltarmos todos a construir um mundo menos umbiguista. De seguida, fruto do cansaço de um confinamento global, das notícias com gráficos ascendentes, do medo de perdermos os que nos são mais queridos e da ansiedade perante o desconhecimento da doença, foi impossível não começar a sentir a espaços as mãos com uma camada de suor e aquela dor de cabeça nas têmporas ao deitar. Vem o amanhã que é igual ao hoje e a espera só se aguenta quando finalmente percebemos que é assim porque não há outra maneira de ser. Resignação é, por fim, tranquilidade e é aqui que devemos ter a lucidez de perspetivar no futuro.

Não há tempo para o distanciamento necessário que avalia a História. Não num cenário pandémico nunca antes vivido por estes humanos, nestas circunstâncias. É preciso ser, mais do que nunca, resiliente no presente para conseguir imaginar um futuro necessariamente diferente. O novo normal, como lhe chamam, só será melhor se os esforços forem empreendidos nesse sentido e, por esta altura já percebemos que vamos todos perder se não nos unirmos.

É irónico pensar que, anos e anos a falar da grande “aldeia global” com a internet, as viagens low-cost ou os grandes fluxos migratórios e, afinal, não há globalização maior do que uma pandemia onde mesmo sem nos podermos tocar, nunca influenciámos tanto o bem-estar do outro. Otimisticamente falando, estamos agora a criar uma nova consciência, onde “a minha saúde depende da tua saúde” e passa a haver um bocadinho mais de empatia entre seres humanos. Por outro lado, o mundo vai continuar a ter classes privilegiadas, pessoas e grupos vulneráveis e muito aproveitamento. É tão perigoso dizerem-nos que vamos voltar ao que éramos, como nos venderem a ideia de que o mundo vai ser agora um lugar cheio de pessoas boas e melhores condições para todos. Ou muito me engano ou haverá um forte apelo emocional das forças políticas e das grandes marcas para criar essa ilusão. E o pior é que vamos acreditar, tal é o desespero de voltar ao calor de um abraço, mesmo que seja em formato de encomenda paga por mbway.

Os grupos mais vulneráveis são assim os mais desprotegidos neste cenário e não precisamos de números que o comprovem. Com a economia parada, os trabalhos mais precários deixam de ser feitos ou de ser pagos. Aumentam as dificuldades económicas à proporção da falta de apoio familiar e social porque estamos todos em casa e perde-se a rede de suporte habitual. Será impossível reconstruir o novo normal sem ver aqui a oportunidade de conseguir uma sociedade mais justa. O mundo depois do COVID decide-se agora e ninguém pode ficar de fora. É difícil? É, mas já se vislumbram trilhos de bons caminhos:

  • Poderá haver uma parentalidade mais presente. O tempo que era visto como um luxo é agora necessidade imposta que deve ser aproveitada. Caírem todos em casa, pais e filhos, com escola e trabalho ao mesmo tempo, tem sito duro, mas podemos ver aqui a criação de um novo paradigma, onde a escola consegue funcionar com menos carga horária ( as aulas de cada disciplina da telescola, por exemplo, têm 30 minutos de duração) e menos TPC, e sobra tempo para atividades em família. Também seria bom elevar disciplinas como a Música ou a Educação Física à importância que tanto merecem.
  • O consumo consciente nunca foi tão promovido. Precisamos de menos bens não essenciais como roupa e afins, há uma grande incerteza em relação à situação financeira de cada família no final do mês e, no fundo, temos mais tempo para refletir sobre os nossos investimentos. Gerou-se uma onda solidária que impôs o foco sobre as marcas nacionais e nota-se uma preocupação crescente por comprar diretamente aos produtores. Quem melhor do que os portugueses para recuperar a sua própria economia?
  • Estamos a usar a comunicação digital de maneira diferente. Plataformas e apps que eram usadas quase exclusivamente para entretenimento, são agora úteis para trabalhar e facilitar a vida que, não podendo ser vivida offline, se torna assim mais funcional. Ao mesmo tempo a influência nas redes sociais tende a mudar de rumo, porque ninguém se liga mais ao aspiracional. O aspiracional é ridículo neste cenário em que todo o mundo, sem excepção, sofre com uma ameaça tão grande à sua saúde. Quero lá saber de Chanel quando me dói o peito! O que queremos ver é transparência e coerência entre o que se vive e o que se partilha, com a tal responsabilidade social que se impõe.

Acredito que para já a máscara na cara e o distanciamento social sejam a resposta certa, mas nas entrelinhas há maneiras de ir combatendo este vírus e moldar novas versões de normalidade. Nada está perdido quando tudo pode ser construído de raíz, ainda que levemos anos a sentir que “vamos ficar todos bem” como nos prometeu o arco-íris.

*Filipa Galrão escreve segundo o novo acordo ortográfico