Comecemos pelos factos: nesta segunda-feira à tarde, na cidade de Minneapolis (estado do Minnesota), George Floyd, um homem negro de 46 anos, desarmado e algemado, foi sufocado até à morte por um polícia branco. Deitado no asfalto de barriga para baixo, algemado nas costas – uma posição que, só por si, dificulta a respiração –, durante cerca de sete minutos o polícia Derek Chauvin apertou-lhe o pescoço com o joelho, enquanto falava com os três colegas presentes. Floyd implorava que não conseguia respirar, sem que os quatro lhe ligassem nenhuma.

Nem o facto de a cena estar a ser vista por várias testemunhas e gravada, os levou a mudar de atitude. Uma ambulância levou Floyd para o hospital, onde foi dado como morto depois de procedimentos para o reanimar. Não se sabe o que levou os agentes a manietar Floyd, mas as pessoas que o conhecem, entrevistadas desde então, são unânimes em afirmar que era um homem cordial, trabalhador, que certamente não andava a vender droga ou a fazer algo ilegal. A patrulha tinha sido chamada porque um comerciante telefonou a dizer que achava que Floyd estava a passar-lhe uma nota falsa. Achava, não tinha a certeza. Um vídeo de vigilância da rua mostra-o a ser levado pelos agentes, sem protestar. Minutos depois, temos a gravação do telemóvel duma testemunha com Floyd já manietado no chão.

Terça-feira, o Chefe da Polícia de Minneapolis, Medaria Arradondo, que é negro, exonerou sumariamente os quatro agentes. O Presidente da Câmara, Jacob Frey, que é branco, deu uma conferência de imprensa num tom fortemente emocional, em que esclareceu que a polícia não foi treinada para manietar um suspeito daquela maneira, antes pelo contrário, é um procedimento proibido, e que se seguirá uma investigação e, quase com certeza, os agentes serão indiciados por homicídio.

Estas atitudes das autoridades não impediram milhares de manifestantes, brancos e negros, novos e velhos, de vir para as ruas provocar a polícia, partir montras, incendiar edifícios e gritar “Não consigo respirar!”, as últimas palavras de Floyd e, também, uma analogia com sensação geral que os negros têm em relação à sua condição. Até agora não há sinais da agitação acalmar, antes pelo contrário; a polícia já passou dos gases lacrimogéneos para as balas de borracha. Em Memphis e Los Angeles também houve protestos.  A 3ª Esquadra, a que pertenciam os quatro guardas, foi incendiada, o que levou o Governador do Minnesota, Tim Walz, a convocar a Guarda Nacional.

Esta situação não é inédita, nem sequer pelo facto de ter sido gravada; os afro-americanos (essa é a expressão legal nos EUA) são sistematicamente discriminados pelas forças policiais em muitas cidades. Em Minneapolis, por exemplo, são 20% da população, mas nos últimos dez anos estiveram envolvidos em 60% das ocorrências violentas com a polícia. E só 1% desses incidentes levaram a sanções contra os agentes.

Apesar da polícia de Minneapolis ser notoriamente racista, não é a única.

Em 2014, em Ferguson, um miúdo de 18 anos, Michael Brown, foi morto a tiro por um polícia por se recusar a sair do meio da rua, segundo testemunhas. Estava desarmado e com as mãos na cabeça quando foi abatido. Os polícias não foram acusados.

Em Staten Island, em 2015, Eric Gardner, de 43 anos, que vendia maços de cigarros sem o selo do fisco, foi asfixiado por um polícia, mais ou menos da mesma maneira: desarmado, algemado e a pedir por amor de Deus que o deixassem respirar. Também nada aconteceu aos polícias.

No mesmo ano e também em Minneapolis, Jamar Clark levou um tiro fatal. Segundo a polícia e os paramédicos, porque estava a resistir à detenção e tentou tirar a arma dum deles; segundo várias testemunhas, foi atingido quando estava deitado no chão e algemado. Dessa vez houve duas semanas de protestos e o caso levou a que o Presidente da Câmara perdesse as eleições seguintes.

Este ano, em Los Angeles, Anthony Yssac, de 26 anosfoi atingido com vários tiros. Esse por acaso estava armado, mas não mostrou a arma aos que o abateram.

Em 2015, dois agentes de Los Angeles mataram um homem negro, deficiente mental, com 16 tiros. Foram absolvidos. Aliás, na quase totalidade dos incidentes, um pouco por todo o país, os agentes não são incriminados, ou, quando são, não chegam a condenados. Um bom exemplo é o de Derek Chauvin, o que matou George Floyd. A sua folha de serviço mostra 18 incidentes violentos, e apenas duas “admoestações”.

Vamos ficar por aqui, deixando de fora dezenas de casos semelhantes. Levaria meses a procurá-los todos e seria cansativo ler a mesma história incontáveis vezes, mudando apenas os nomes e os locais. O caso mais antigo que encontramos é de 1962, mas muitos outros haverá, antes de depois. Alguns passam quase despercebidos, outros, por uma razão ou por outra, provocam dias de protestos, amiúde violentos.

Esta discriminação, nacional, também se manifesta ao contrário. No ano passado, ainda em Minneapolis, a australiana Justine Ruszczyk passeava no seu jardim, descalça e de pijama, quando ouviu ruídos suspeitos. Ligou para o 911 e quem apareceu foi o agente Mohamed Noor. Não se conseguiu perceber exactamente a sequência de acontecimentos, mas Noor acabou por matar Justine com um único tiro. Desta vez o julgamento foi rápido e o polícia condenado a prisão efectiva. Acontece que Justine era branca e loira e Noor negro, de origem somali.

Há depois os milhares de incidentes em que afro-americanos são achincalhados e sovados por agentes fardados, com desculpa ou sem ela. A questão não se resolve com leis; o que não faltam são leis, federais, estaduais e municipais que criminalizam estes comportamentos.

O que há, é uma cultura duplamente perigosa.

Por um lado, o racismo, evidente. Discute-se até à exaustão se os negros são perseguidos por serem criminosos (o ponto de vista da “direita”) ou se é a discriminação que os marginaliza (o ponto de vista da esquerda). Enquanto se discutem as razões, a situação no terreno não muda. O facto é que, em 2017, os afro-americanos, 12% da população, são 33% dos encarcerados.

Por outro lado, a proliferação indiscriminada das armas. Segundo uma estatística nos Estados Unidos há 120,5 armas para cada 100 pessoas; 393.347.000 no total, em 2020. Tirando os cidadãos ordeiros que são malucos por armamento, os caçadores, e outros casos inofensivos (digamos) ainda ficam muitas armas na mão de pessoas perigosas. As polícias, sabendo que têm uma alta probabilidade de dar com uma pessoa armada, andam sempre com o dedo no gatilho.

Um exemplo: assistimos, em Nova Iorque a uma cena sem história em que um polícia mandou parar um carro com uma família branca (pai, mãe e dois filhos). Para pedir os documentos ao condutor, o guarda seguiu o procedimento padrão: ficou atrás da porta (não fosse o homem abri-la contra ele), com a mão sobre o coldre da arma (caso o pai de família puxasse da sua...). Esta mentalidade de guerra civil latente leva inevitavelmente a muitos “incidentes”.

Portanto, voltando à questão inicial, se a morte de George Floyd e os dias de agitação civil que estão a decorrer em Minneapolis vai mudar alguma coisa, a resposta é evidente. Nada mais a declarar.