Um livro para rir

Antes que comece a inchar o peito com orgulho pátrio, convém dizer isto: o tal português nunca quis escrever um livro hilariante. Quis escrever, isso sim, um livro que ensinasse inglês. Só que se esqueceu dum ponto importante: para ensinar inglês, era preciso aprender primeiro a língua.

Sim, Pedro Carolino escreveu um livro sobre como falar inglês – sem saber falar inglês!

O livro tem, hoje, o título English As She Is Spoke. Foi várias vezes publicado no Reino Unido e nos Estados Unidos como livro de humor. Mas a primeira edição (O Novo Guia da Conversação em Portuguez e Inglez) era uma tentativa genuína de ensinar inglês.

É preciso talento – ou muita lata…

O certo é que o livro foi um sucesso. Pedro Carolino teve a honra de ser insultado por Mark Twain, que considerou o autor português um «honesto e respeitável idiota». Não é para todos.

Querem um exemplo do hilariante texto? Aqui vai:

The fishing.
That pond it seems me many multiplied of fishes. Let us amuse rather to the fishing.
I do like-it too much.
Here, there is a wand and some hooks.
Silence! there is a superb perch! Give me quick the rod. Ah! There is, it is a lamprey.
You mistake you, it is a frog! dip again it in the water.

Pode encontrar o texto completo aqui.

Se o leitor não sabe inglês – o que não é nenhum problema, a não ser que queira ensinar a língua –, confie em mim: o texto é uma desgraça sem ponta por onde pegar.

Falei-lhe de Pedro Carolino por uma razão. Já lá vamos.

Antes, pergunto-lhe a si, leitor deste livro: qual foi o tema das páginas que tem entre mãos [Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português]? Foram vários, mas o principal está escarrapachado na capa: os erros falsos da língua.

Sim, tentei contrariar a tendência para inventar regras arbitrárias ou encontrar lógicas falsas na nossa língua.

Ainda há pouco encontrei mais um caso: alguém afirmava que a frase «Hoje estaremos fechados.» está errada – porque logo a seguir à palavra «hoje» não podemos usar o futuro (pois, pois).

É mais um exemplo a juntar aos casos que o leitor encontrou ao longo do livro: «terramoto», «queria um café», «saudades tuas», «pelos vistos», «espaço de tempo»… São todas palavras ou expressões correctíssimas, muito portuguesas, mas que algumas pessoas se afadigam a condenar por razões muito distantes do verdadeiro conhecimento linguístico.

Agora, há quem fique logo arrepiado: então quer dizer que não há regras? Que posso dizer tudo? Não, não! A língua tem regras – todas as línguas as têm! Pedro Carolino, por exemplo, não conhecia as regras do inglês… Se eu disser «ontem fui passeei felizmente por Porto com filhos», uma pessoa até percebe o que quero dizer, mas estou a triturar o português. As regras existem!

Aquilo que este livro combate são os mitos sobre essas mesmas regras… Defendo aqui o bom conhecimento linguístico, para falarmos da nossa língua sem temores nem palas nos olhos.

Preposições no fim

Na verdade, estes mitos existem em todas as línguas – e são até mais comuns em sociedades em que a alfabetização aumenta de forma acelerada, trazendo consigo algumas inseguranças e muita necessidade de «falar bem». O inglês, por exemplo, também tem os seus mitos – trago-os à liça só para não ficarmos a pensar que o problema é só nosso. Aliás, se olharmos para os mitos dos outros, longe dos nossos demónios nacionais, conseguimos perceber melhor a arbitrariedade e inutilidade destas regras inventadas.

Repare o leitor nesta frase tão inglesa: «I don’t know what he is talking about.» Ou seja: «Não sei do que é que ele está a falar». No final da frase inglesa, temos uma preposição. Ora, há quem defenda que não podemos terminar uma frase inglesa com uma preposição. Porquê? Porque em latim tal não era possível. Logo, alguns gramáticos do século XVIII decidiram que o inglês devia seguir os passos da língua de Roma. Depois, há quem junte a esse argumento latino este outro: se estamos a falar de uma «preposition», a palavra não pode vir no fim (é uma preposição).

Que grande confusão mental. As preposições inglesas já existiam muito antes de alguém ter ido buscar um termo alatinado para as mencionar. Se o nome desta categoria não faz sentido, mude-se o termo – não a própria realidade. Mas nem é preciso mudar o termo consagrado… Deixemos as preposições com o nome que têm.

Acabar uma frase com uma preposição é uma construção legítima em inglês. É, aliás, uma das características dessa língua. Qualquer bom escritor inglês acaba muitas frases com preposições. Mas alguns profissionais do pânico acham que não devem. Porquê? Porque fica mal. Na cabeça deles, claro.

Há uma história apócrifa em que Churchill teria dito o seguinte a um revisor que lhe tinha corrigido uma frase a terminar numa preposição: «This is the sort of English up with which I will not put.» Ou seja: «Este é o tipo de inglês que eu não admito.» – só que dito numa sintaxe torcida, mas não quebrada, para tentar mostrar como seguir a regra é uma boa maneira de criar frases horríveis. A história é inventada, mas imagino que o único primeiro-ministro laureado com o Prémio Nobel da Literatura saberia bem o que são regras falsas e regras verdadeiras. A frase apócrifa de Churchill é horrível porque segue a tal regra falsa. Uma frase mais natural, mas que os pedantes do inglês acham estar errada, seria: «This is the sort of English which I will not put up with.» Quer dizer o mesmo, mas é um pouco mais natural. Aqui está a ligação para um artigo sobre esta história.

Infinitivos bem divididos

Passemos ao mais famoso erro falso da língua inglesa. Muitos ingleses estão convencidos de que não devem dividir os infinitivos (ou seja, fogem a sete pés dos «split infinitives»). Esta regra não aparece em nenhum prontuário ou gramática inglesa minimamente respeitável e, no entanto, ainda hoje muitos pensam que é verdadeira. Sim, segundo estas pessoas, dizer «to boldly go» (como se diz no Star Trek) é um erro terrível. Devíamos dizer «to go boldly». Sim: seguir esta regra leva alguns ingleses a escrever frases feias, pouco naturais.

Se o leitor não acreditar em mim, pode encontrar muitas informações sobre este mito e outros em livros como Our Magnificent Bastard Tongue, de John McWhorter, The Language Instinct, de Steven Pinker, Word by Word, de Kory Stamper – e tantos, tantos outros…

Mas, assim sendo, esta «regra» existe porquê? Alguém se lembrou de escrever, há uns séculos, que não devíamos dividir os infinitivos em inglês – porque no latim também não se dividem! Claro que não se dividem: em latim, os infinitivos são uma só palavra. Já em inglês, são duas. Não poder dividir duas palavras porque há línguas em que essas duas palavras são uma só é das coisas mais abstrusas que já ouvi. Mas as lógicas dos profissionais do pânico são assim: muito ilógicas.

Pois é: nenhuma destas manias é regra da língua inglesa. Uma pessoa pode decorar estas proibições e continuar a falar pessimamente inglês; da mesma forma que pode não obedecer a nenhuma delas e falar muito bem. Não me custaria acreditar que Pedro Carolino soubesse debitar este tipo de regras, mas o problema dele não era esse – o problema era não saber a gramática da língua.

A força destas regras inventadas vem da tradição, da insegurança linguística, de ideias falsas sobre a língua (por exemplo, a ideia peregrina de que a gramática inglesa deve seguir o latim…), da falta de conhecimento e da força das regras de etiqueta: quando muita gente torce o nariz a uma palavra ou construção, claro que temos de ter em conta tal opinião generalizada. São manias, pequenas regras de etiqueta inúteis – mas que, em certos momentos, têm muita força.

Qual é o mal?

Mas estas regras inventadas fazem mal? Fazem mal, sim: dão a falsa sensação de que estamos a falar bem quando as seguimos. Quando, na verdade, falar bem e escrever bem é outra coisa. No fundo, estas regras falsas são uma perda de tempo. São ainda uma forma de levantar barreiras sociais sem qualquer razão.

Sendo assim, o que são, de facto, as regras da língua? Como vimos, os linguistas chamam-lhes «gramática» – não o livro, mas o conjunto de regras que todos os falantes duma língua têm dentro do cérebro sem que saibam, necessariamente, descrevê-las. São regras complexíssimas e com muitas excepções (que, no fundo, são outras regras ainda mais complexas). A gramática é o sistema que os linguistas investigam e descrevem.

No fundo, as verdadeiras regras do inglês são as regras que Pedro Carolino não tinha aprendido quando escreveu o seu livro. São aquelas regras que aprendemos naturalmente no caso da língua materna, sem grandes lições nem livros (excepto no caso da escrita) – e que nos esforçamos para aprender mais tarde, quando queremos falar outra língua já em adultos.

Qualquer falante nativo de inglês – mesmo que mal saiba ler – sabe que o texto de Pedro Carolino está pejado de erros: não é preciso manuais de etiqueta ou listas de erros para o saber. Todos os falantes têm a gramática na cabeça.

(Na verdade, se quisermos ser precisos, cada falante de inglês terá a gramática de um dos dialectos da língua na cabeça. Ou, talvez, de dois ou três dialectos dessa língua. Um desses dialectos será o inglês-padrão – mas não necessariamente. O que acontece na escola, muitas vezes, é a aprendizagem do dialecto-padrão. O mesmo acontece com o português. Note-se que estou a usar a palavra «dialecto» com o sentido geral que lhe é dado na linguística contemporânea: qualquer variedade da língua que distinga um grupo de outro. Há também, nos estudos linguísticos, um sentido mais restrito: qualquer variedade da língua que distinga um grupo de outro no plano geográfico — no plano social, a palavra usada é «sociolecto».)

Quer isto dizer que não temos nada a aprender no que toca à nossa própria língua? Claro que temos! Temos de aprender os vários registos, a língua-padrão (que inclui algumas das regras de etiqueta, para o mal e para o bem), a ortografia, estratégias para sermos claros e convincentes – e muito, mas mesmo muito mais. Perder tempo com regras que não existem na língua, impostas por mania ou desconhecimento a falantes inseguros, só nos deixa com menos tempo para falar bem e escrever bem.

Por isso, ingleses, dividam os vossos infinitivos se assim conseguirem dizer melhor o que querem dizer; e, claro, terminem frases com preposições sempre que entenderem.

Já nós, portugueses, não dividimos os infinitivos (mas conjugamo-los!), nem costumamos acabar frases com preposições, mas dizemos «queria um café», «tenho saudades tuas», «hoje, vou ler um livro»…

A língua agora sem medo

Para terminar, uma nota: imagino que a origem de muitos dos erros falsos que descrevi seja o medo. Há o medo da ambiguidade («se eu digo “já agora”, se calhar os outros vão compreender “agora”»), o medo de pensar mal (um excelente medo; só é preciso ter também medo de pensar mal sobre a língua); o medo de usar as palavras dos outros…

Quem tem medo da ambiguidade só tem uma solução: reler o que escreve e tentar encontrar ambiguidades. Mas não tentemos proibir palavras ou expressões por causa de ambiguidades imaginárias. (Outro conselho: dêem algum valor à ambiguidade. Às vezes, até dá jeito.)

Quem tem medo de ser pouco lógico também só tem uma solução: esforçar-se por pensar cada vez melhor. Proibir esta ou aquela construção desse bicho muito natural e muito caótico que é a língua não nos ajuda em nada nessa tarefa difícil que é pensar bem. Sim, é preciso olhar para o uso concreto da língua, para as frases que temos à frente, para tentar perceber o pensamento que às vezes se esconde lá por trás – incluindo os erros que surgem por causa duma sintaxe mal pensada. Mas olhar para a língua enquanto conjunto de regras e hábitos e tentar refazer essas regras e hábitos para nos pôr a todos a pensar melhor não serve de muito. Diria mesmo: não serve para nada e tira-nos tempo para pensar melhor.

Quem tem medo do português dos outros devia olhar para isto: todas as línguas são faladas por muitas pessoas. Há pessoas diferentes, há profissões diferentes, há classes sociais diferentes, há regiões diferentes, há hábitos diferentes. Gostavam mesmo de viver num país onde todos falassem da mesma maneira? Onde usassem as mesmas expressões? Pensem se gostariam que todos usassem a mesma roupa… Claro que temos regras de etiqueta e às vezes há falhas, porque há muitos contactos entre pessoas diferentes (houve tempos em que a sociedade estava mais separada em compartimentos simples…). Ora, mesmo com falhas e desentendimentos, um pouco de tolerância nunca fez mal a ninguém – e, já agora, se não for pedir muito, alguma boa vontade e genuína curiosidade em saber mais sobre as outras pessoas. Ah, e não se esqueçam de que essas outras maneiras de falar a língua que é de todos são essenciais à boa literatura. Já é uma boa razão para morder a língua antes de criticar «o comer» dos outros.

Quem tem medo das redundâncias talvez deva reparar como as redundâncias, em tudo o que é natural e orgânico (como as línguas), são mais do que toleráveis: são essenciais e uma prova da robustez desses sistemas.

Quem tem medo das alternativas na língua deixe-se disso. Certamente não quer ficar com uma língua mais pobre, pois não?

Quem tem medo da mudança… Bem, proponho que continue a usar a língua tal como existia nesses tempos áureos que nunca houve.

Quem tem medo do fim do mundo descanse. Respire fundo. O mundo ainda não acabou. Amanhã há mais. Mas, lembremo-nos todos: não acabou para todos, mas todos os dias acaba para algumas pessoas. Querem mesmo perder tempo a matar expressões da língua? Não é melhor usá-la para falar e para viver?

Não temos de ter tanto medo. Quem se deixa levar por estes medos fáceis presta um mau serviço à língua e aos falantes da língua.

Porque é preciso usar essa mesma língua sem andar com medo de a usar, é preciso ginasticá-la, ganhar bom ouvido. Ler muito.

Treinar. Ler mais. Escrever. Ler diferentes textos, diferentes registos. Falar. Olhar para a língua com curiosidade. Usá-la de forma criativa. Explicar o que é preciso. Escrever o melhor possível. Não desistir. Perder o medo.

Sei que já disse isto, mas é que não há mesmo volta a dar.

Coragem!

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(Este texto foi publicado anteriormente no livro Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras.