Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


‘O estado de sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública’, lê-se no primeiro artigo da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro. Hoje, dia 3 de maio, o estado de emergência passou a estado de calamidade, mas o estado de sítio em que ficaram as nossas vidas continua.

Não faltam notícias sobre os eventos cancelados ao vivo, sobre os infinitos que apareceram online, sobre os apoios que não são suficientes, sobre a falta de resposta imediata e sobre o setor cultural ter o último número da fila de espera da chegada à nova normalidade. Admira-me a indignação: com exceção dos cancelamentos em massa, que até o boom online era uma dependência, afinal a cultura já não era assim, não esteve sempre mal suportada, pouco reconhecida? Quantos artistas e profissionais do espetáculo assinam contratos no início de uma relação de trabalho? Quantos sabem como será a sua vida profissional no final do espetáculo em que estão? Quantos têm vários trabalhos para fazerem o único que não lhes dá rendimento suficiente para viver? Os famosos recibos verdes e a precariedade encaixam como uma luva rota nas pontas de todos os dedos: servem, mas não protegem.

Na normalidade, as queixas são para os amigos, em casa, que não há ânimo para mais, nem tempo. Na emergência, ficou a descoberto o vazio e a fragilidade de um setor que foi o primeiro a voluntariar-se para salvar todos os outros do isolamento absoluto. Admira-me a evidência: afinal, a cultura constrói-nos, dá-nos sentido de pertença, eleva-nos? A cultura, em última instância, até nos salva? Ora, a par com uma calamidade pública, em que a saúde é a primeira a ser posta em causa ao segundo, coberta por um manto viral invisível, cá nos chega a ovelha ronhosa (de ronha, sim) para dar alento e alimento às almas.

E parece que funciona. Até para os artistas e profissionais do espetáculo funcionou a paragem ao vivo porque, obrigados ao isolamento, puderam gritar finalmente das veias; a habitual corda do pescoço apertou de uma forma descontrolada. E isto é bom. Veem-se painéis brancos nos murais das redes sociais, palavras e ações organizadas de várias entidades, que faço questão de aqui deixar para que se lhes conheça o nome, a existência, o trabalho digno, a luta diária, alguma dela antiga. São elas a Fundação GDA, a Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas, o CENA-STE - Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos, a Performart - Associação Para As Artes Performativas em Portugal, o Acesso Cultura, a Rede - Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, e os grupos formais e informais Precários Inflexíveis, Artesjuntxs, Artistas 100%, Comissão Profissionais das Artes, Intermitentes Porto e Covid, Independentes mas Pouco, M.U.S.A. - Movimento de União Solidária de Artistas e Ação Cooperativista - Artistas, Técnicos e Produtores.

Não espero soluções perfeitas em estado de emergência, se é de emergência. Não espero a definição de uma política cultural sólida, se não estava definida antes. Não espero a ordem, se fomos apanhados de surpresa. Mas percebo que a alargada noção de empatia e de solidariedade que pudemos ganhar entre quatro paredes nos levou a saber como exigir no futuro. ‘A Cultura e as Artes são vetores estruturais para o desenvolvimento de toda a sociedade civil portuguesa. Também por isso, importa promover a articulação entre as várias instâncias, num diálogo concertado entre o Ministério da Cultura e os Ministérios do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social; das Finanças; da Educação; e da Economia (também a Secretaria de Estado do Turismo)’, lê-se no manifesto do movimento Unidos pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal.

Lamento ter sido preciso uma pandemia para colocar tão a descoberto a ferida da cultura portuguesa, mas agora sabemos todos e todas como ela nos tem doído. E isso fará com que cheguemos a um mundo novo com vontade de escrever uma história diferente daquela que nos tem sido contada. Haja saúde, mental também.

*Rita Dias escreve segundo o novo acordo ortográfico