Os Estados Unidos vivem o sétimo dia de agitação, após o hediondo assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis. Donald Trump ameaça enviar o exército para as ruas em protesto e já admitiu disparar sobre os seus cidadãos. Ontem, em Washington a polícia lançou gás lacrimogéneo e limpou os manifestantes da envolvente da Igreja de São Jorge, para que Trump pudesse discursar lá de bíblia na mão. Jornalistas foram presos, outros foram alvo de rajadas de balas de borracha.

Várias cidades americanas têm sentido a fúria de uma comunidade que tem sido ao longo das décadas visada pela violência policial. Os protestos respondem à violência institucional das forças policiais, cuja função deveria ser proteger os cidadãos - e não sufocá-los até à morte com uma articulação dos membros inferiores. Se muitos se tornaram violentos, também se deve à resposta repressiva e provocatória da polícia, que não tratou da mesma forma os brancos armados até aos dentes que, há semanas, clamavam pelo direito de ir fazer a pedicure quando foi decretado o confinamento nesse país, por causa do coronavírus. Sendo que estas últimas manifestações (que não eram contra a violência policial racial, mas contra, no fundo, a ciência) não mereceram de Trump nem o repúdio, nem dele motivaram ameaças de chacina ou apelos à guerra civil.

Pode questionar-se a eficácia em termos de mudança política dos protestos violentos. Igualmente podemos questionar a eficácia em termos políticos dos protestos pacíficos. Sim, Martin Luther King. Mas 55 anos depois das marchas de Selma, os afro-americanos podem ter conquistado o direito ao voto, mas não deixaram de ser tratados pelo aparelho estatal americano como o futebol português trata o mister Vítor Oliveira: são de segunda.

O próprio Martin Luther King disse que os motins são a voz dos que não são ouvidos. Num país em que as forças de segurança continuam a ser complacentes com supremacistas brancos e violentos com afro-americanos, que não se esperasse que as vítimas acendessem uma velinha e cantassem músicas, aguardando que os funcionários de uma instituição armada até aos dentes e que não sofre as consequências das suas acções acordasse um dia, fizessem a barba, vestissem o uniforme e dissessem “Hoje, se calhar, vou tentar não matar negros”.

Agora vou enunciar qual é que é o juízo de opinião que deve emitir se não deseja arreliar ninguém, de ambos o lado da - literal - barricada. "Olá, eu vou dizer a minha opinião: acho que a polícia não deve matar afro-americanos, mas também está mal furtar objetos de lojas". Está a ver? “Reparem, o facto a polícia americana ser racista e assassina é chato, mas subtrair bens de outrem é crime! Consta até do Direito Penal e tudo.” Tau, uma no cravo, outro na ferradura. Está muito mais descansado, não está? Há uma estrutura de poder que, não só não protege, como assassina consistente e impunemente uma comunidade de um país, mas, por outro lado, "agarra que é ladrão!". Pronto, emitiu uma opinião eminentemente política e ninguém vai deixar de querer ser seu amigo. Viu? Parabéns pelo sucesso!

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