Para além da solidariedade geográfica peninsular e europeia, há mais de quarenta anos que as democracias dos dois países se dão cordialmente, depois de outros quarenta em que as ditaduras conviveram em paz. Filipe VI é filho de Juan Carlos, que passou a juventude em Cascais até ser escolhido por Franco, e tal como o pai fala português e tem amigos por estes lados. Se alguma coisa pode surpreender, é não nos visitar mais. Talvez o faça particularmente; como rei, segunda visita oficial, com todas as honras e salamaleques devidos a um chefe de Estado amigo.
No entanto, assim como é evidente a empatia e simbiose contemporâneas, não se pode ignorar que os dois países passaram a maior parte das suas longas histórias numa relação amor/ódio cheia de peripécias menos agradáveis. A “ocupação” (assim se diz nos livros de História, o que já diz tudo...) ocorreu entre 1580 e 1640, qualquer estudante não completamente distraído o sabe. Talvez não saiba que Filipe II de Espanha se tornou Filipe I de Portugal por direito de sangue, que na época era reconhecido por todas as chancelarias, inclusive por Roma. Tratou o nosso país com pinças e até veio a Lisboa durante um ano, a pedido dos comerciantes da capital, que o encheram de presentes e levaram em troca muitas mercês. Em 1 de Dezembro de 1640 a revolta dos quarenta fidalgos, com o apoio do povo, dividiu a nobreza, e muitos deram voz por Espanha, ficando em Madrid. Todavia, a marca dessa “ocupação” foi tão forte, que a data tem até hoje, trezentos e setenta e seis anos passados, mais ressonância do que a da fundação da nacionalidade, no século XII.
Vem isto a propósito dos três dias em que Filipe VI e a Rainha Letizia andaram entre Lisboa e Porto, num passeio de Estado cheio de protocolo e actos simbólicos, incluindo um discurso do Rei na Assembleia da República. Houve visitas apropriadas, como a da colecção Miró em Serralves, jantares de gala com a presença do nosso Presidente e do Primeiro-ministro e os discursos cordiais e mesuras próprias destas ocasiões.
Mas a opinião pública não consegue esconder um certo desconforto em relação à Coroa espanhola. Há sempre quem pense que a Espanha nos quer empalmar – como há quem ache que até seria boa ideia. Não faltaram comentários sagazes, cínicos ou indignados à escolha da data; o casal real saiu de Portugal a 30 de Novembro, na véspera do feriado nacional agora reposto. Parecia quase que Filipe VI vinha recordar a expulsão do tataravô, Filipe III de Portugal e IV de Espanha.
Mas o que levantou mais celeuma não foi essa quase coincidência de datas, ou a falta de razões para a visita. Nesta era da pós-informação, os portugueses, que gastam mais tempo com fait divers do que com questões importantes, atiraram-se ferozmente às falhas no protocolo.
Os noticiários jornalísticos e televisivos limitaram-se a cobrir os acontecimentos, sem aprofundar explicações para a visita ou implicações que não haveriam. A quase coincidência com o Primeiro de Dezembro não foi mencionada, até porque se trata de uma data com duas leituras; se, por um lado, é o dia da recuperação da independência, por outro é visto pelos monárquicos – que são poucos, mas ruidosos – como simbólico da restauração da dinastia de Bragança, assim a fazer de conta que o 5 de Outubro é uma data menor.
Mas os noticiários em papel e da tv não têm a força, a penetração e a influência da informação digital – blogues, redes sociais e publicações como esta que tem à sua frente. E foi nos meios electrónicos que os portugueses se manifestaram à vontade e apresentaram as suas críticas. Nada de elucubrações políticas; o que indignou as pessoas foram as gafes dos portugueses os modelos da rainha, amplamente divulgadas com fotografias comprovativas.
Primeiro, houve a situação transcendente do carro de suas majestades ter chegado aos Passos do Conselho do Porto do lado contrario, o que levou a que Letizia saísse primeiro e fosse cumprimentada antes do rei. Culpa do protocolo, foi a conclusão de intermináveis discussões.
Quanto a Letizia, usou um vestido que já apresentara há anos numa cerimónia em Espanha, e outra roupa também pela segunda vez. Terá sido desprezo por Portugal? Será que está a economizar nas fatiotas? Que pobreza!
Mas as mais vorazes críticas foram para Fernanda Tadeu, a mulher de António Costa. Em dois jantares de gala, a senhora colocou o casaco nas costas da cadeira! Onde é que já se viu tamanha falta de chá? Ninguém lhe ensinou que nunca se pendura o casaco na cadeira? Não havia um serviçal à mão para o guardar? E o protocolo, onde estava?
Não contente com isso, a senhora, que é uma excelente pessoa e trabalha como educadora de infância, calçou uns sapatos com uma virada branca que pareciam meias de ténis a aparecer por cima dos collants. Se eram meias, ou se era uma aplicação nos sapatos, foi discussão que rendeu milhares de comentários nas redes, como se de nova união ibérica se tratasse.
Teresa Leal Coelho, casada com o embaixador português em Madrid, também caiu na berlinda por aparecer num dos jantares com os cotovelos em cima da mesa. Ex-deputada e muito conhecida pelas suas diatribes nos tempos da Coligação, Teresa tinha obrigação de ter melhores maneiras, não acham?
Finalmente, as más educações protocolares – estas mais sérias – no Parlamento. Os deputados do Partido Comunista levantaram-se, mas não aplaudiram o discurso do rei. Os deputados do Bloco de Esquerda, nem aplaudiram nem se levantaram. Com isso devem ter perdido um bom número de votos na próxima eleição, porque nós, mesmo sendo maioritariamente republicanos, não gostamos de ver um senhor tão bem posto ser achincalhado. Sobre o que o rei terá dito – placitudes, certamente – ninguém ouviu.
Quanto a Fernanda Tadeu, é melhor que nunca se candidate a nada...
(Artigo alterado às 22h44: alteração de Filipe II de Portugal para "Filipe III de Portugal e IV de Espanha")
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