A palavra pandemia, introduzida no vocabulário mundial corrente há meia dúzia de meses, gerou uma nova realidade. Se a existência de um vírus com as características da COVID-19 já era, só por si, um factor de enorme preocupação, imagine-se o seu impacto numa comunidade de crianças ou de jovens com cancro confrontados com uma doença que mina os alicerces de qualquer família mais robusta.

O estado em que vivemos desde Março afectou a vida da esmagadora maioria dos portugueses. Talvez por isso, num pequeníssimo inquérito de rua efectuado por uma estação de televisão, os entrevistados (adultos e crianças) tivessem listado uma espécie de neologismos do quotidiano: vírus, confinamento, máscara, pandemia. A rotina das pessoas alterou-se, como se alterou o comportamento, o vocabulário, o pensamento. São tempos diferentes, desafiantes.

A pandemia colocou uma camada de dificuldade em cima da camada de preocupação com que viviam as famílias desta comunidade de crianças com cancro. Todos falamos de uma nova normalidade, mas a expressão normalidade numa família onde um jovem, uma criança, ou até um bebé, foram diagnosticados com cancro, tem uma utilização muito específica, como se fosse um jargão técnico. Falamos da normalidade das consultas, dos tratamentos, dos exames, das idas restritas à escola.

Nesta normalidade da vida cabe a partilha de experiências com outros pais; cabe o contacto físico alargado: uma mão que toca e confere segurança, um abraço que conforta ou um sorriso que distrai. Com os voluntários numa espécie de lay-off pandémico, com os avós resguardados, com o distanciamento social, com a protecção acrescida a doentes, com a obrigatoriedade da máscara, essa dimensão de conforto físico desapareceu, tornou-se virtual, distante, quase ineficaz. Os pais estão mais sozinhos, mais entregues a si próprios, com uma rede social ou familiar de apoio que ficou reduzida, em tantos casos, a uma dimensão ínfima.

A pandemia suscita outras preocupações reais, embora não visíveis a um olhar mais distraído: quantos pais, afectados pelo receio ou pelas regras, atrasaram uma ida ao médico e, com isso, um possível diagnóstico tão precoce quanto possível? Que rotinas hospitalares se alteraram ou atrasaram (consultas, tratamentos, acompanhamento psicológico ou outro) que provocaram nesta comunidade um maior sentido de desprotecção? Como regressarão as crianças à escola? Como fica o estado anímico destas pessoas restringidas a uma casa pequena, demasiado pequena?

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Setembro é o mês de sensibilização para o cancro pediátrico. Em Espanha, no Chile, na Rússia ou no Uganda há um grupo alargado de gente que faz um esforço adicional para manter a oncologia pediátrica na agenda dos decisores políticos ou dos mecenas. Não nos move um desejo oco de visibilidade ou de ruído. Falamos de pessoas concretas – bebés ou crianças diagnosticados com cancro; falamos dos sobreviventes, a esperança viva de uma desejada vitória sobre a doença, que, dez anos depois de serem dados como curados (falo de dez anos, como podia falar de oito ou de quinze), ainda veem os prémios de seguro agravados no momento da compra de uma casa. Falamos destes mesmos sobreviventes que lutam há anos por um passaporte oncológico onde conste toda a sua história e que possam levar consigo num mundo globalizado; falamos ainda destes sobreviventes que, se não tiverem a sorte de viver em Lisboa, não têm acesso a consultas de acompanhamento.

Setembro é o mês para defendermos que o pouco que se vai fazendo em termos de investigação ou de ensaios em oncologia pediátrica não pode ficar prejudicado pela realocação das verbas a outras áreas. É o tempo de afirmar que os apoios às IPSS não podem falhar, muito pelo contrário, pois são estas associações que fazem o que o Estado não consegue fazer – ou faria pior. É tempo, também, de relembrar que a perda de rendimentos nuns pais já com dificuldades económicas pode pôr em risco a saudável recuperação de uma criança com cancro. O lay-off não pode ser um drama em cima de uma angústia.

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Recebo, no fim de semana, uma mensagem de outro ponto do globo: C., um bebé que ainda não chegou ao ano de vida, vê a sua existência abalada por um neuroblastoma. O meu mês de Setembro é este bebé e estes Pais, de quem sou amigo, confrontados com o desafio.

João de Bragança, Presidente da Comissão Directiva da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro   


A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 25 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.

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