Por esse país fora, pais e irmãos vêem-se fechados em casa por tempo indeterminado. Até agora, é só um fim-de-semana um pouco diferente, mais caseiro. Em breve, lá andaremos a raspar o fundo do baú, à procura de histórias, jogos e ideias para passar o lento tempo.

Ora, uma boa fonte de histórias, talvez pouco infantis, mas não menos interessantes, é a maneira como as palavras andaram a viajar para chegar até nós. Hoje, enquanto os miúdos não acordam para mais um dia passado em casa, puxo o fio da palavra "isolamento". Donde vem ela?

Antes de viajarmos no tempo, podemos observar que a palavra foi formada usando o sufixo "-mento", que é uma das muitas formas que a língua portuguesa encontrou, pelos séculos fora, de transformar um verbo num nome. Neste caso, o verbo original é "isolar".

"Isolar" também deu origem ao nome "isolação". Era necessário ter duas palavras? A pergunta não faz sentido: quando uma palavra cai no goto dos falantes, fica — venha de onde vier e mesmo que já houvesse por cá outra. Depois, cada uma vai ganhando tarefas ligeiramente diferentes.

Retiremos o "-mento" desta história. O verbo "isolar" veio de onde? Parece ter vindo do francês, caminho percorrido por miríades de palavras nossas. Sempre gostámos muito de ir buscar palavras ao velhinho hexágono. Até já chegámos a ir buscar palavras ao francês que tínhamos lá deixado há muito tempo: o nosso "feitiço" foi parar às mãos dos franceses, que depois o devolveram com a forma "fétiche". Não somos os únicos a saquear o francês: basta pensar nos espanhóis, que também roubaram palavras aos franceses sem pedir perdão, e nos ingleses, que têm uma língua germânica mascarada de latina.

Mas avancemos — ou melhor, recuemos no tempo à procura da origem do verbo «isolar». No francês, o verbo é "isoler", que parece ter nascido do adjectivo "isolé", que por sua vez terá vindo do italiano "isolato", o particípio passado de "isolare". A palavra viajou muito, saltando de língua em língua e de classe em classe. E, no entanto, o significado nunca deu grandes saltos. "Isolare", "isoler", «isolar»…

Pois bem: "isolare" vem da palavra "isola", que significa "ilha" e vem do latim "insula". Numa palavra tão antipática como é "isolamento", esconde-se esse pedaço de terra rodeado de mar, que nos faz sonhar com aventuras.

Tudo parece fazer sentido: isolar é tornar ilha... Temos sorte: o sentido que as palavras têm nem sempre segue assim, tão direitinho, pelas línguas fora.

A palavra latina "insula" deu origem ao nosso "isolar". Sem sair desta faixa à beira do Atlântico, a mesmíssima palavra deu origem a uma palavra bem nossa. Falo de "ínsua", que hoje significa uma pequena ilha fluvial — se olharmos para a palavra e a compararmos com "insula", notamos a queda do "l" entre vogais, uma das marcas mais antigas do português e do galego.

A mesma palavra latina fez outros percursos noutras paragens. Não só deu origem à tal "isola" italiana, como, aqui ao lado, foi mastigada por gerações de bocas castelhanas até chegar à "isla" que os nossos vizinhos usam todos os dias. Já os romenos, do outro lado das línguas latinas, usam uma bem-comportada "insulă".

Então e a nossa "ilha", a palavra que usamos com o mesmo significado da "insula" latina? Veio do latim, é verdade, mas passou pelo catalão, com a sua "illa". A tão bela "ilha" portuguesa tem origem numa palavra dessa língua que ainda é falada em várias ilhas, desde as Baleares a um recanto da Sardenha. (Será demasiado cruel falar de cenários de férias por estes dias?)

Como vemos, as línguas latinas são irmãs que não se importam nada de emprestar brinquedos umas às outras. Nunca viveram isoladas — o que podemos dizer de quase todas as línguas. Não são muito diferentes de nós, que as inventámos: temos a nossa casa, mas gostamos de sair. Não somos muito dados a ficar fechados, o dia todo, dentro de quatro paredes...

Já que temos de ficar uns tempos armados em ilhas, usemos as palavras e as histórias para nos achegarmos uns aos outros. São um pequeno alívio nestes dias do vírus.

Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.

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