Quando não pensamos na questão, associamos línguas a países. Sabendo que existem pouco menos de 200 países independentes no mundo, é habitual ouvir respostas na ordem das 200 línguas. Todos sabemos que existem países com mais do que uma língua, mas também existem países que partilham a língua — logo, o número deve andar por aí.

Ora, nem de perto nem de longe. O número não é esse…

Mas antes de dar uma espécie de resposta, convém dizer: contar línguas é muito mais difícil do que parece. Por exemplo, será que os «dialectos do Chinês» não serão línguas separadas? Afinal, apresentam diferenças tão significativas (ou mais) do que as diferenças entre as várias línguas latinas…

Mas não precisamos de ir tão longe: basta olhar para Espanha e França para termos vários problemas a contar línguas.

No Reino Unido, as discussões sobre se o Scots é uma língua ou um dialecto do inglês são antigas (sobre o assunto, há uma coluna recente no The Economist).

Entre o croata e o sérvio há variedades que são alçadas à categoria de língua quando surge um novo país: o montenegrino será uma língua própria? E o bósnio? E o sérvio e o croata — não poderiam ser considerados variantes de uma só língua? Há respostas para todos os gostos.

Mesmo a nossa própria língua… Na Galiza há quem olhe para o galego e para o português e veja uma só língua de ambos os lados e há quem olhe para a mesma realidade e conte duas línguas.

Estas perguntas surgem em qualquer espaço em que haja aquilo a que os linguistas chamam continuum dialectal — é o caso das línguas latinas e das línguas eslavas entre a Croácia e a Sérvia.

Há casos em que a distância é tão óbvia que ninguém pergunta se estamos perante línguas diferentes, mesmo sem sair do território do mesmo Estado. É o caso do galês e do inglês — e é o caso do basco e do castelhano, por exemplo. Que o castelhano e o basco são duas línguas bem distintas, ninguém duvida — mas se olharmos para a língua basca, encontramos uma diversidade dialectal tão grande que poderíamos ser levados a concluir que estamos perante um grupo de línguas. Essa diversidade está disfarçada pela existência do euskara batua, um padrão criado nos últimos 200 anos, que é a língua ensinada nas escolas.

Em resumo: é difícil saber quantas línguas existem no mundo porque os critérios divergem — e, para dizer a verdade, ninguém as conhece a todas. No entanto, há quem tente. Há quem olhe para as centenas de línguas da Papua-Nova Guiné, para as línguas dos nativos americanos, para a riqueza linguística de África, para a variedade que se esconde por baixo das línguas-padrão da Europa e tente contá-las como um miúdo conta berlindes. Que número encontram esses contadores de idiomas? Habitualmente, um número entre 6000 e 7500. O catálogo Ethnologue indica 7117 línguas no mundo. É obra!

Muitas destas línguas estão a desaparecer, levadas na enxurrada das línguas mais importantes em cada Estado. Mas, por outro lado, as línguas ganham novas variedades nos seus registos populares (e, mais lentamente, nos registos formais) que prenunciam a impossibilidade de manter a uniformidade de uma língua em territórios extensos.

As línguas vivem entre forças centrípetas (o padrão, o Estado, os contactos entre falantes) e centrífugas (a distância física e social, a própria mecânica interna das línguas, o uso complexíssimo e sempre renovado de cada língua). Mesmo se houvesse um critério fácil de aplicar, o número de línguas andaria sempre a saltar, para cima e para baixo, ao longo dos séculos.

Esta imensa variedade linguística é o estado natural da Humanidade. Lembrando-se da história de Babel, há quem veja tal diversidade como uma maldição. Mas, ao longo da História e hoje mesmo, em tantos sítios por esse mundo fora, os seres humanos aproveitam sem pejo a proximidade entre línguas, traduzem com naturalidade, aprendem as línguas dos vizinhos.

Mais do que horror pelo número aparentemente excessivo, sinto fascínio ao pensar que cada uma destas línguas guarda em si histórias, provérbios, particularidades lexicais e gramaticais e uma certa maneira de rir do mundo — e cada uma tem (e isto é o importante) gente real que a toma por sua e se recorda de a ouvir da boca de quem lhe contou as histórias com que adormeceu em criança. Para lá dos números, é isso que importa quando pensamos nas línguas maternas da humanidade.

Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.