Esta crise tremenda afetou quase todos os aspetos da nossa vida. O confinamento levou muito comércio para a desgraça, mexeu com a prática de ir para o lugar de trabalho, condicionou as idas às compras, limitou-nos ou impediu-nos a possibilidade de irmos ao restaurante, ao bar, à piscina, à discoteca, ou de viajar. Mas também evidenciou a oportunidade de passarmos a viver na cidade com mais qualidade — com menos balbúrdia, menos ruído, menos engarrafamentos de trânsito, menos contaminação, menos híper sobrecarga de turistas.
Com as ruas e avenidas aliviadas do congestionamento do trânsito automóvel, ficámos com a prova das possibilidades que temos se não houver tantos carros: espaço para as crianças poderem voltar a brincar na rua, para amplas esplanadas sem mesas encavalitadas umas nas outras, corredores para as bicicletas, passeios largos para os peões, vias bem acomodadas para o trânsito reservado a transportes públicos, sem perturbação maior de quem anda a pé.
Manter esta acalmia é possível sem grandes custos. Basta colocar marcações pintadas no piso, colocar vasos com arbustos ou pequenos pilaretes a delimitar zonas. Já compreendemos que é possível, desde que as autoridades que comandam a cidade tenham essa vontade.
Há uma dúzia de anos, mexer no trânsito da Baixa de Lisboa ou do centro de qualquer cidade era uma opção radical. Entretanto, centenas de cidades pelo mundo puseram-se a ampliar os espaços sem circulação de automóveis. Muitos lojistas, perante essa possibilidade, clamaram que estavam a atacar o negócio deles. O tempo mostrou que ruas sem automóveis e com esplanadas são mais apetecíveis para as compras. Veja-se o que aconteceu na rua Augusta em Lisboa ou na de Santa Catarina no Porto.
A crise da pandemia oferece-nos a oportunidade ideal para ser repensado o espaço público. É uma opção política com suporte técnico. Em ano de eleições autárquicas é um bom tema para marcar diferenças efetivas entre candidatos.
As cidades que souberem sair do status quo são as melhores colocadas para prosperarem.
Tudo também passa pela requalificação do transporte público, rede fundamental para o futuro das cidades.
Não é pensável que possamos continuar a ir em automóvel privado para todos os lugares da cidade. Assim, cada um de nós vai ter de renegociar a relação pessoal com o automóvel.
Sem acumulação de automóveis que entopem o trânsito em ruas e avenidas os transportes públicos podem tornar-se meios rápidos para as nossas deslocações. Evidentemente, há que investir na qualidade do transporte público, com autocarros, elétricos e metro funcionais, cómodos, frequentes, pontuais, eficazes. Que possa deixar de haver gente apinhada no corredor e em todos os espaços de um autocarro, que possa haver espaço entre os passageiros.
As ruas que o confinamento aliviou mostraram-nos o que o trânsito entupido não deixava ver: podemos ter mais qualidade de vida em cada rua.
E já temos dados para perceber que as cidades que souberem tratar bem o transporte público passam para a frente da qualidade de vida.
Estamos a ver como as faixas cicláveis que tantas cidades instalaram estão a ser cada vez mais utilizadas por cidadãos satisfeitos. E neste campo, há que garantir que as faixas para as bicicletas e os passeios confortáveis (pode ser preciso abdicar da calçada portuguesa em parte da via) têm toda a segurança, sem cruzamentos ameaçadores. As ruas assim concebidas para caminhar, pedalar e para o transporte público são melhores para a economia, para o planeta, para cada pessoa.
Também é preciso saber evitar, com inteligência, a invasão da cidade pelos turistas. É outra oportunidade que a paragem geral pela pandemia nos oferece para repensarmos tudo.
Sabemos que o turismo é um bem essencial. Mas é vital que a oportunidade comercial e a criação de empregos gerada pelo turismo não leve ao “sobreturismo” que se vira contra os turistas e contra os residentes.
É preciso que os lugares não recebam turismo acima daquilo que conseguem absorver com qualidade. É essencial que os turistas não entrem em concorrência com os residentes e que a opinião dos habitantes seja tida em conta.
Provavelmente vai ser preciso pôr travão a fundo à multiplicação de hotéis, hostels e todo o tipo de ofertas de alojamento local, airbnb e outras.
Todos gostamos muito do preço acessível dos voos low-cost. Por mais que nos custe, é preciso limitar os efeitos tóxicos do excesso de visitantes que o preço baixo promove
Cabe aos decisores políticos tratarem a visão de curto prazo de vários setores que exploram o turismo sem cuidarem a intensidade do fluxo.
Vamos querer continuar a ser teletrabalhadores? Parece consensual que nada substitui o contacto direto, pessoal, ao vivo, com os companheiros (mesmo que com eventuais atritos) de trabalho. A troca de ideias e a discussão coletiva de soluções é mais propícia em ambiente presencial. As pausas para o café também fazem falta à “boa onda” no lugar de trabalho.
Mas também é indiscutível que escapar ao stress da deslocação entre casa e o local de trabalho é um benefício. E que o teletrabalho, se com boas condições, pode favorecer melhor harmonia entre vida profissional e vida privada.
No entanto, sabemos que o teletrabalho não é bom para todos. Se é praticado num apartamento exíguo com várias pessoas, não resulta. O teletrabalho abre desafios novos na organização do trabalho, na eficácia da comunicação e até em questões como a proteção de dados e a cibersegurança.
Com prós e contras, tornou-se uma realidade irreversível. Sabemos que há quem goste e quem não goste da prática de teletrabalho, mas a experiência deste último ano estimula a explorar oportunidades, com flexibilidade, tendo em conta possibilidades e preferências.
Temos ocasião ideal para tirar bom proveito da experiência deste ano com tanto inferno. Temos bom impulso para melhorar a qualidade de vida.
Há já um ano milhões de portugueses acordaram teletrabalhadores, e apesar de avançar o progressivo desconfinamento, assim vão continuar, com a vida metida no espaço virtual do Zoom.
O confinamento mostrou-nos uma vida alternativa: com menos ruído, com menos contaminação, liberta da hiperpresença dos turistas, em que descobrimos o nosso bairro e passamos a conhecer os vizinhos, com os ritmos adaptados ao teletrabalho.
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