Portugal tem-se abstido pouco de coroar excêntricos, mas o Variações não é só mais um na caderneta. Ele nunca foi daquelas caricaturas efeminadas que conservamos num frasco de gozo abjecto. Mais que ave rara, ele incorporava as melhores características duma ave exótica, daquelas que falam e temos por estimação: plumagem exuberante e a capacidade de provocar espanto ao repetir as nossas palavras, a nossa voz. A tradição e a prevaricação: era a nossa voz. O António inventou a ideia dum país cuja melhor fronteira é exactamente a voz, onde a unicidade é o uníssono, onde o eco da Amália é o garante de eternidade lusa. Variações era ave exótica (daquelas que falam e temos por estimação) com uma plumagem exuberante cujo colorido, amiúde, se revelava xaile negro. Portugal poucas vezes terá sido tão grande como aqui, quando coroou um excêntrico destes.
Talvez eu esteja de novo a induzir-me em erro. É possível que o António Variações não tenha andado tão entronizado em vida quanto faço parecer. Ainda assim, creio que é um dos artistas portugueses a quem mais se tem tentado fazer justiça (entre Braga e Nova Iorque, é possível que nos tenha faltado pontualidade britânica para lhe fazer justiça em vida). Mas, mesmo admitindo uma aclamação tardia, ou um consenso póstumo, nada me rouba a ideia de que tivemos para o Variações um poder de encaixe que não temos para os desalinhados de hoje em dia. Não quero com isto dizer que nós, os que observamos, já fomos melhores e mais tolerantes, quero é dizer que os desalinhados nunca voltaram a ser tão bons.
Pretendia escrever muito pouco acerca do Variações (algo inédito, tendo em conta a minha verborreia crónica, aguda quando se trata do António). Sobretudo, queria escrever pouco sobre a forma como o músico mudou o país – desejava que essa mudança fosse tão contundente, consensual e evidente que eu já nada pudesse acrescentar. Na realidade, as minhas certezas quanto ao impacto do António Variações são pequenas e apenas provêm de uma outra certeza, essa grande e inabalável: Variações foi o maior músico pop português de sempre. Crer que as figuras maiores mudam um país é crer nesse país. Ou seja, o António provoca tudo aquilo que é o meu espírito patriótico: a certeza fundamentada de que parimos grandes vultos, e o optimismo infundamentado de que sabemos valorizá-los.
É por isso que qualquer empreitada sociológica que eu tente traçar a partir do Variações vai acabar sempre por redundar numa homenagem. Com a História não é muito diferente: o que sei de cor sobre o séc. XX em Portugal é que tivemos pouco mais de 40 anos de Estado Novo e pouco menos de 40 anos de António Variações. É como se o colorido segundo fosse uma indemnização pelo pardacento primeiro - não acredito em justiça cósmica, nem em retribuição kármica, mas creio nas variações, visões e ficções, do António.
Sobre este génio desejo continuar a ter de escrever pouco, pois desejo um país que o reconhece muito. Um país que ficou para sempre melhor a partir de 3 de Dezembro de 1944, quando António Joaquim Rodrigues Ribeiro nasceu. Um país que ficou mais pobre a 13 de Junho de 1984, anteontem, quando Variações se calou. Também morrem, estes que nunca acabam.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
De Braga para Nova Iorque . A ver.
Porque Variações não foi o único grande a deixar-nos a 13 de Junho, sugiro este excelente texto no Observador sobre o excelente Al Berto.
E mais uma vítima deste Junho impiedoso foi, hoje, o Alípio de Freitas. Um dos portugueses mais fascinantes da nossa história recente. Lembrei-me e fui procurar este texto do Victor Bandarra, aquando da estreia do documentário “A Causa e a Sombra”.
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