Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


Quando penso no regresso a um mundo novo, surge-me a questão de nunca termos visitado esse mundo antes. Pode ser apenas um pormenor ou um jogo de palavras mas, de um ponto de vista psicológico, é muito importante. Apesar de ser um regresso, regressamos a um mundo que já não é exactamente como o deixámos antes do período de quarentena.

Temos vivido no desconhecido, com a presença de variáveis extraordinárias a que nos tivemos de adaptar rapidamente e sobre as quais não tínhamos experiências anteriores onde nos basear. É comum sentirmos dificuldade em lidar com este tipo de incerteza e imprevisibilidade por nos fazerem sentir com pouco controlo sobre o nosso ambiente e sobre o que vai acontecer a seguir. A tentativa de controlarmos o que não é, por nós, controlável pode ser gerador de receios e ansiedade.

Muito se tem pensado, escrito e investigado (e ainda bem) sobre as diversas dificuldades que o confinamento trouxe consigo: os medos, a gestão das relações com quem nos é próximo, os desafios no emprego, as quebras financeiras ou a nossa própria regulação emocional. Associadas a estas dificuldades, surgiram, também, diferentes tipos de reacções. Se por um lado, há quem esteja em sofrimento psicológico por estar afastado de pessoas significativas, por outro, há quem esteja confortável com o contacto social mediado pela tecnologia. Se por um lado, há quem esteja desejoso de recuperar rotinas antigas, regressar a lugares, reencontrar amigos e família (mesmo que de forma adaptada à situação actual), por outro, há quem goste de usufruir em casa das novas rotinas que encontrou.

Tendo em conta a multiplicidade de reacções que esta fase espoletou, é de prever que a fase de desconfinamento que iniciamos também seja um processo sobre o qual devemos reflectir. Este mundo a que vamos regressar é tão desconhecido como era aquele em que vivemos, nas últimas semanas, em confinamento.

Os primeiros resultados de investigações, a serem já divulgados pela comunicação social, relativos à pandemia e à situação de isolamento, mostram o seu impacto na saúde mental dos portugueses. São dados relevantes que, apesar de precisarem de ser complementados, podem informar e orientar o trabalho dos profissionais de saúde mental (nomeadamente, psicólogos clínicos, como é o meu caso) nos próximos momentos, identificando grupos de risco e/ou problemáticas a intensificar-se.

Enquanto pessoas, de qualquer profissão, estes dados podem, também, fazer-nos pensar sobre a forma como estamos a regressar a este novo mundo. Depois do período de confinamento, há quem esteja a regressar mais carregado, eventualmente, com pesos que antes não conhecia. Ou que conhecia, mas que tinha estratégias para aligeirar ou com que tentava não contactar. As opções são muitas (todas válidas, naturalmente). O que é importante não esquecer é que se os pesos forem demasiados para se carregar sozinho, pode não se conseguir caminhar. Pode ajudar perguntarmo-nos: Como tenho vivido este período? Que impactos teve/está a ter mim, nas minhas relações, no meu trabalho? Que emoções, sentimentos, pensamentos e sensações originaram? Sinto que fui ou não capaz de me regular? Em que situações? Quais as situações mais difíceis? É natural que ainda estejamos a encontrar respostas para algumas destas perguntas ou que existam perguntas para as quais já temos respostas mas que ainda não sabemos o que fazer com elas. Parece-me que o objectivo inicial destas perguntas é tornar-nos conscientes da forma como nos sentimos, para podermos orientar a nossa acção (não fosse essa uma das funções das emoções). Conhecermos e respeitarmos a forma como nos sentimos é, em todos os mundos, um primeiro passo para a nossa regulação emocional e, consequentemente, para a regulação do nosso bem-estar.

É necessário que continuemos atentos uns aos outros e, além das medidas de protecção física, que cuidemos de nós, de amigos e familiares a um nível emocional. Ao mesmo tempo, é necessário continuar a desmistificar os pedidos de ajuda psicológica. É natural pedir ajuda quando se sente que determinada situação é ou está a ser demasiado dolorosa, desafiante ou pesada para se lidar sozinho. Vejo o reconhecimento dessa necessidade como um acto de coragem uma vez que, enfrentar as nossas dificuldades tal e qual são, é exigente e pode doer (muito). Pedir ajuda, num momento de grande incerteza e de eventual desregulação emocional, pode ser, ao mesmo tempo dessa dor, um grande facilitador da adaptação ao novo mundo.

Não se pode ser como antes num mundo de depois. Não podemos regressar, rígidos, a algo que é novo e ainda desconhecido. Será necessário que estejamos disponíveis para a novidade, para nos flexibilizarmos, adaptarmos e reconhecermos as nossas necessidades (psicológicas).

*Maria Inês Galvão escreve segundo o antigo acordo ortográfico

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