Para começar, convém esclarecer: a fotografia foi publicada a 15 deste mês na conta do Instagram do Presidente (basta procurar o utilizador “@realdonaldtrump” na app) e comentada em todos os canais da comunicação social. Dias antes, a Primeira Filha, Ivanka, publicou no Twitter uma imagem a segurar uma lata de feijões Goya como se fosse um perfume caro (procurar “Ivanka Trump” no Twitter). Sendo uma funcionária federal, Ivanka não pode, por lei, fazer publicidade de produtos comerciais; e sendo o pai, o primeiro funcionário federal, também não pode. Mas, se formos ver as coisas que ele não pode fazer e já fez, talvez esta não seja a maior das transgressões. É, “apenas”, mais um rebaixamento do estatuto de Presidente dos Estados Unidos, a um nível que ninguém pensaria possível. Assim como se o nosso Presidente Marcelo publicasse uma foto a anunciar as sardinhas Tenório, por exemplo.

Mas deixemo-nos de legalidades, que não é o forte da família. A pergunta que logo se coloca, certamente, é porque o Comandante em Chefe, sentado na chamada “Resolute Desk” (“Cadeira das Decisões) na Sala Oval da Casa Branca, numa secretária onde foram tomadas tantas decisões históricas, declarações de guerra e de paz, tratados de alcance nacional e universal e ponderações de magnitude planetária, decidiu perder alguns minutos do seu precioso tempo para fazer publicidade à marca Goya, representada por cinco produtos da linha de milhares do maior produtor alimentar para o mercado hispânico. (Já agora, um esclarecimento linguístico: nos E.U.A, “spanish” quer dizer “espanhol”, de Espanha; “hispanic” aplica-se aos cidadãos originários das américas central e do sul que falam espanhol.)

Tudo começou quando, a 9 de julho, Trump reuniu no chamado Jardim das Rosas vários dirigentes de empresas “hispanic”, numa acção de propaganda em que assinou a “Hispanic Property Iniciative”, uma Ordem Executiva destinada da dar facilidades educacionais e económicas aos cidadãos desses grupos étnicos. A popularidade do Presidente nessa faixa anda bastante precária, devido à perseguição aos imigrantes, aos centros de detenção de crianças na fronteira com o México e à sua adversidade ao DACA (programa de proteção legal a imigrantes). Agora que estamos a quatro meses das eleições, nada melhor do que um pouco de conversa fiada para os convencer a votar da maneira certa. É verdade que cerca de 10 a 12 milhões, ou seja, mais ou menos três por cento dos residentes, estão ilegais, e portanto não votam. Mas os que votam (hispânicos ou de outras origens) ainda chegam a 44 milhões, o que não é um número nada desprezível. (Estes números, não sendo exactos, dão uma ideia da grandeza da questão.) Aliás, nem todos os hispânicos são anti-Trump. Na Flórida, por exemplo, há um numeroso grupo de cubanos tradicionalmente republicanos.

Entre os felizes contemplados com o acesso a Trump estava Robert Unanue, o dono da Goya. Num discurso panegírico inflamado, comparou o Presidente ao seu avô, que fundou a companhia, e terminou com ”somos abençoados por ter um homem assim na Casa Branca".

O resultado desta pequena cerimónia inconsequente tornou-se viral. Milhares de hispanos postaram nas redes sociais fotos a atirarem as latas de Goya para o lixo, lembrando a postura racista e anti-latina (na realidade, pró-branca) de Trump e insultando Unanue por se ter excedido nos elogios. Do mesmo modo, milhares de hispânicos postaram fotos dos seus carrinhos de supermercado pejados de produtos Goya. 

No ambiente cada vez mais polarizado que se vive nos Estados Unidos, até o consumo de feijões se tornou um acto político – do mesmo modo que uma questão sanitária, o não uso de máscaras, também é um acto de fé na liberdade individual acima das preocupações da ciência. 

A questão poderia ter ficado pelas guerras das redes sociais, que já não são poucas. Mas Trump não quis perder mais esta oportunidade de radicalizar tudo o que, na sua opinião, o possa favorecer e atacar o “inimigo”. Daí a fotografia a promover produtos que, diz quem o conhece, nunca consumiria.

Num momento particularmente complicado para o país, a braços com a maior epidemia de Covid-19 do mundo ocidental, com um desemprego só visto na Depressão de 1929, a economia a não mostrar sinais de recuperação, as cidades em pé de guerra com o movimento Black Lives Matter, e agentes federais não identificados, vestidos de uniforme de combate, a arrebanhar protestantes no meio da rua – para não falar da escalada da guerra comercial com a China e outros problemas internacionais de monta, o Presidente dos Estados Unidos encontra tempo, entre dois jogos de golfe, para colocar o seu peso na promoção de uma marca cujo dono o elogiou demais.

Se isto não é o fim do mundo tal como o conhecíamos, não sei o que será.