A história do sapo e da princesa: desde as histórias de adormecer aos desenhos animados, quantas vezes não aparece o sapo e a sua princesa — que, fechando os olhos às aparências, dá um beijo ao animal e o transforma num príncipe.

Pois, deu-me para ir procurar a história tal como escrita pelos Irmãos Grimm. Pus-me a ler, à espera da velhinha história que conhecia, quando comecei a perceber que aquilo não era bem como me tinham contado...

Quando acabei de ler, estava de boca aberta. Como é que nunca ninguém me tinha dito que a história era assim? Só me apeteceu andar pela rua a gritar toda a verdade sobre o sapo e a princesa!

Contive-me. Não gritei nada a ninguém. Guardei a história para mim. Pouco depois, fui buscar os meus filhos à escola, com a minha mulher. Ia já com a história debaixo da língua, à espera da primeira oportunidade. Enquanto não chegávamos à escola, lá fui conversando com a Zélia sobre os temas do dia, a ouvir rádio, a esperar pacientemente que os semáforos passassem a verde, a avançar pelas ruas lentas do trânsito — mas só conseguia pensar no sapo, na princesa e no que de facto aconteceu.

Quando já estávamos os quatro no carro, o Matias distraído, nos seus dois anos, a olhar para o espanto que é haver ruas com pessoas e carros, o Simão a contar o que se passara na escola, a Zélia a ouvi-lo e a responder, não me contive mais...

— Conhecem a história do sapo e da princesa?

— A princesa que deu o beijo ao sapo?

Isto disse o Simão. A Zélia olhou para mim já a estranhar a lembrança fora de horas.

— Pois, essa mesmo. Parece que afinal... Enfim, oiçam a história verdadeira...

E lá contei a história, que convido o caríssimo leitor a ler na versão dos Irmãos Grimm.

Se não tiver agora tempo, faço um resumo. A princesa deixa cair uma bola dourada, que cai num poço. Um sapo oferece-lhe ajuda para recuperar a bola, com a condição de que, depois, a princesa o levasse para o castelo, para jantar com ela e dormir na mesma cama. A princesa aceita, pensando para os seus botões que promessas feitas a sapos não são para cumprir. Quando o sapo lhe dá a bola, a miúda desata a correr, que já estava na hora de voltar, e o sapo não a consegue acompanhar. No dia seguinte, a princesa está sentada a jantar, com seu pai, o rei, quando o sapo bate à porta... Promessas são promessas, lembra o velho rei depois de saber o que se passara — e a princesa acaba por ter de dar jantar ao sapo. No fim, antes de dormir, a rapariga ainda tenta fechá-lo fora do quarto, mas nada feito: o sapo exige dormir na cama dela, tal como prometido. A princesa, enojada, não aguenta mais...

O Simão e a Zélia (e, talvez, o Matias) ouviam a história, já a estranhar o rumo que tudo aquilo levava. Como é que dali sairia um beijo?

— Foi então — continuei eu — que a princesa pega no sapo e o atira com toda a força contra a parede. Quando cai da parede, já era um belo príncipe...

Silêncio no carro. Só se ouve, baixinho, a música da rádio. Pelo retrovisor, vejo que o Simão está com as sobrancelhas franzidas, com cara de «o meu pai não é bom da cabeça». Já a Zélia, ainda esperançosa de que o mundo fosse como nos contaram, pergunta:

— E depois deu-lhe um beijo?

— Não, não há beijo nenhum na história. Embora, enfim, o príncipe e a princesa, depois de a história acabar...

— O quê, pai?

— Nada, nada!

A Zélia continuava a olhar para a cidade, a sentir o mesmo que eu sentira horas antes, perante a história verdadeira. O Pai Natal não existe — e a princesa não beijou o sapo! O beijo foi acrescentado ao conto depois, pelos pais e mães que não gostavam de esborrachar um príncipe contra a parede.

O Simão lá declarou:

— Um beijo faz muito mais sentido!

Pois faz, digo eu. Mas a história era assim... E muita sorte teve o sapo dos Irmãos Grimm: há versões em que ela lhe corta a cabeça. No fim, o que vale é que o sapo se transforma sempre num príncipe. (Também aparece na história um tal de Henrique, que estava com o coração preso por ferros havia muitos anos, mas fica para outro dia. Já basta de confusões infantis.)

O certo é que nesse dia continuámos a conversar sobre as histórias de encantar. Imaginámos a história com beijo e sem beijo, sempre acrescentando os tais pontos que se acrescentam aos contos para se irem tornando nas memórias de infância de todos nós. O Simão talvez se lembre, um dia, não só do sapo que se transformou num príncipe, mas também dessa viagem por Lisboa em que lhe contei a verdade sobre a irritadiça princesa que atira com batráquios à parede. Histórias são histórias, com ou sem beijos.


Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.