Numa frase, a situação resume-se a isto: o Presidente Donald Trump perdeu as eleições e recusa-se a reconhecer a sua derrota. Não é nada de inédito neste mundo – ainda em Agosto deste ano Alexander Lukashenko fez exactamente o mesmo na Bielorrússia – mas é inédito num país que não só se considera “a democracia mais antiga do mundo”, como ainda se orgulha de ter um sistema exemplar, com transições pacíficas e até elegantes entre presidentes.

A situação, na prática, não é assim tão simples. O sistema eleitoral é muito complicado; na realidade são cinquenta eleições, com regras ligeiramente diferentes, que se somam através dum sistema indirecto – cada Estado tem um certo número de votos no Colégio Eleitoral – para escolher o vencedor. Os governos dos Estados podem (e já o fizeram noutras ocasiões) ditar aos seus membros do Colégio um candidato que não ganhou o voto popular. Além do voto presencial, no dia da eleição, é possível votar antecipadamente, ou então pelo correio. Conforme os casos, os votos por correspondência são contados antes do dia do acto propriamente dito, ou a partir desse dia, por um período que varia até oito dias. Os votos vindos do estrangeiro, que incluem os muitos milhares de militares estacionados um pouco por todo o planeta, têm prazos diferentes. É possível, e já aconteceu em certas eleições – a última em 2016, quando Hillary Clinton perdeu para Donald Trump – que um candidato tenha mais votos individuais e perca na contagem do Colégio Eleitoral, devido a uma regra, sempre discutível: todos os Grandes Eleitores dum Estado votam no candidato que ganhou a maioria nesse Estado, e não proporcionalmente ao voto popular.

Em tempos normais, isto é, na grande maioria das eleições que ocorrem de quatro em quatro anos desde 1788, estas peculiaridades democráticas não levantaram problemas de maior. (Aconteceram problemas menores, e até uma disputa muito complicada, em 1876, que se resolveu com um acordo de última hora, até hoje mal visto.

Tornou-se moda, e motivo de orgulho no sistema, uma transferência de poder cordata entre o presidente cessante e o novo, com troca de amabilidades e realce no civismo do processo. Entre a eleição, que ocorre na primeira terça-feira de Novembro, e a tomada de posse, a 20 de Janeiro, a equipa do cessante passa os dossiers para a equipa do sucessor, pondo o Governo (Administração, como eles chamam) ao corrente dos casos pendentes e das regras de funcionamento do executivo.

(Já agora, “República das Bananas” é o termo que os americanos usam para os regimes espúrios que eles impuseram aos países das Américas Central e do Sul, numa desavergonhada defesa dos seus interesses comerciais, considerados estratégicos. O termo foi criado pelo cronista O. Henry em 1904, referindo-se às Honduras, onde a United Fruit explorava a produção de bananas, e depois generalizou-se para todas as situações em que os Estados Unidos impunham, amiúde pela força, um governo favorável aos seus interesses.)

Mas não vivemos em tempos normais. Uma razão é genérica: a pandemia de Covid-19 levou a que estas eleições tivessem uma proporção inusitada de votos por correspondência, que totalizaram o dobro dos votos presenciais. Como em muitos Estados os votos pelo correio só podem ser contados depois do dia da eleição, a contagem arrasta-se por muito tempo e os resultados do dia podem não reflectir o resultado final.

Isso também não seria um problema, não fosse outro factor, a personalidade do Presidente em exercício, Donald Trump. Receando perder as eleições, começou muito antes a pôr em questão a legitimidade do voto por correspondência, alegando que se presta a falsificações. Para garantir essa possibilidade, uma vez que o longo histórico deste tipo de voto não mostra irregularidades de monta, colocou na direcção dos Correios um fiel, Louis DeJoycom a missão implícita de reduzir a sua capacidade e atrasar a entrega dos votos colocados nas caixas de correio. A manobra não resultou porque o Congresso interveio, inquirindo DeJoy de modo a expor quaisquer tentativas nesse sentido.

O descrédito constante que Trump lançou sobre o voto postal, mais a situação pandémica, tornou a opção uma questão partidária, que acabou por o desfavorecer. Segundo vários inquéritos feitos ainda antes das eleições e as próprias estatísticas eleitorais, uma grande maioria de democratas votaram pelo correio, enquanto os republicanos, menos preocupados com a pandemia, votaram em pessoa. Tal como previsto – estava-se mesmo a ver – na contagem inicial, dos votos presenciais, Trump estava à frente, mas à medida que se iam adicionando os votos postais, Biden ultrapassou-o.

No dia seguinte à eleição, 4 de Novembro, Trump proclamou vitória; nos dias subsequentes, à medida que os votos postais davam a vitória a Joseph Biden, o Presidente lembrou que sempre tinha dito que os democratas aproveitariam o sistema para o roubar. Os seus apoiantes, que são quase metade dos eleitores, começaram imediatamente a repetir esta versão. Já no dia das eleições, grupos tentaram perturbar a contagem, “inspectores” oficiais ou autonomeados provocaram distúrbio nas salas de contagem, e grupos armados cercaram alguns desses centros. E, mesmo antes, os republicanos apresentaram mais de trezentas queixas nos tribunais, pré-contestando pormenores que, segundo eles, já cheiravam a ilegalidade.

O facto é que, no princípio desta semana, mesmo com votos ainda por contar, tornou-se óbvio que Trump perdeu as eleições, tanto no voto popular, como na contagem do Colégio Eleitoral. Como é possível saber o resultado num Estado antes de terminada a contagem? Muito simples: o número de votos que falta contar não são suficientes para mudar o resultado, mesmo que fossem todos para Trump – sendo que, como se sabe, os votos postais são percentualmente mais favoráveis a Biden.

Os republicanos estão a tentar contestar as contas em vários Estados, ou alegando que há votos falsos, ou que não foram contados votos republicanos, ou empolados os dos democratas. Até hoje, sábado, nenhum destes factos foi provado. Quanto à recontagem, o histórico de dezenas de eleições indica que nunca é suficiente para grandes alterações – poucas centenas no meio de milhões, no máximo. Quer dizer, a vitória do ticket Biden/Harris é um facto consumado. Para ganhar a eleição em tribunal, Trump teria que reverter as votações na Pensilvânia, Geórgia e Nevada ou Arizona, todos eles Estados onde Biden já foi declarado vencedor. Mas a função das contestações republicanas não são reverter o irreversível; destinam-se a dar vida ao mantra de Trump de que as eleições foram aldrabadas. Essa léria é aceite sem discussão pelos seus fiéis, e será motivo de teorias da conspiração para os próximos anos; nunca será possível convencê-los do contrário. Mas os processos têm uma outra função mais sinistra: levar a que os Governadores republicanos contrariem o voto popular nos seus Estados, mandando os seus Grandes Eleitores votarem por Trump. É uma hipótese legal possível, o que certamente levará a qualquer coisa parecida com uma guerra civil. Mas não é impossível...

Sabido o resultado inevitável, Biden assumiu a vitória e começou imediatamente a formar a sua equipa. Nomeou uma comissão de especialistas de alto nível para lidar com a questão da pandemia e já escolheu o seu Chefe de Gabinete, Ronald Klain, uma figura com boas relações nos dois partidos e que foi o responsável pela prevenção da epidemia de ébola. Esta semana, Biden começou a falar com chefes de Estado de vários países, que telefonaram a felicitá-lo. Ontem, sexta-feira, foi a vez da China finalmente reconhecê-lo. E o Papa! Não que Trump seja religioso (Biden é católico) mas não deixa de ser um reconhecimento simbólico importante. O Vaticano é particularmente cuidadoso com "gaffes" políticas. Dos países importantes, só falta a Rússia. Até Maduro o felicitou.

Quanto a Trump, continua a negar que perdeu, e mandou que ninguém na Administração reconheça a posição de Biden. Deu ordens para que se comece a elaborar o orçamento de 2021 e proibiu a directora da Administração Geral de Serviços de prestar quaisquer informações ou fornecer os fundos necessários à equipa de Biden, o que seria a sua função numa passagem dum presidente para outro.

Por outro lado, despediu a cúpula do Pentágono, começando pelo Secretário da Defesa, Mark Esper, e espera-se que mande embora Gina Haspel, a directora da CIA. Até os republicanos estão preocupados com esta “limpeza”, que decapita a segurança dos Estados Unidos.

O Presidente pouco tem aparecido em público; no dia seguinte às eleições foi jogar golfe, e desde então está fechado na Casa Branca a tweetar furiosamente que ganhou as eleições esmagadoramente, que o querem roubar e que dali não sai, dali ninguém o tira.

Mas o mais estranho é a posição dos senadores e próceres republicanos. Certamente que sabem que ele perdeu, mas não o querem irritar, porque é opinião prevalecente que Trump continuará a mandar no partido, ou pelo menos a exercer uma grande influência. Até há quem diga que quer concorrer novamente em 2024. Mitch McConnell, a velha raposa, limitou-se a dizer que o Presidente tem todo o direito legal de contestar a eleição em tribunal. Lindsey Graham, a raposa mais nova, diz abertamente que Trump não deve ceder. (São os dois principais responsáveis pela nomeação da juíza do Supremo Tribunal Amy Coney Barrett, dias antes das eleições).

Aos poucos, alguns republicanos começam a admitir publicamente a situação, como o Governador do Ohio, Mike DeWine, o grande estratega de George W. Bush, Karl Rove, e até os editores do “Las Vegas Review Journal”, uma publicação de um dos maiores financiadores do partido, Sheldon Adelson.

Os cenários possíveis para os próximos dias são imprevisíveis. Trump, furioso, provavelmente já percebeu que não pode fazer nada, o que o pode levar a fazer de tudo, desde declarar guerra à Coreia do Norte a perdoar todos os seus ex-colaboradores que foram condenados por vários crimes (a lista é extensa...), passando por despedir a torto e a direito. Discute-se até se poderá decretar um perdão a si próprio.

Quanto a Biden, tenta deitar água na fervura, fala da sua tomada de posse como facto consumado, e faz contactos próprios dum chefe de Estado.

O facto é que Trump ainda é Presidente até 20 de Janeiro e Biden já é Presidente desde 9 de Novembro. O formato “República das Bananas” fez ricochete...