Lembram-se de quando demorávamos seis horas a chegar ao Algarve? Eu não, sou demasiado novo. Ainda assim, é recorrente ouvir os relatos saudosos de quando Portugal era um pequeno país isolado, em que apenas uma pequena elite ia a banhos, partindo às cinco da manhã de Lisboa, demorando-se na estrada nacional a contornar gado em contramão, para finalmente alcançar as águas tépidas das praias do Algarve - o ex-líbris de um país humilde, no tempo em que Portugal era o segredo mais bem guardado da Europa.

Com as limitações de deslocação motivadas pela pandemia, há quem tenha revelado ter saudades do país em que apenas o Miguel Sousa Tavares e mais três ou quatro famílias abastadas faziam férias. Há umas semanas, em entrevista ao Observador, o primeiro-ministro António Costa alimentou as expectativas dos portugueses virem a ter Verão, mas aconselhou a planear as férias no interior do território nacional.

Portanto, o primeiro-ministro europeísta que sublinhou a urgência da solidariedade entre países da Zona Euro, apelando à intervenção das instituições supranacionais, de repente é como se viesse dizer "portugueses, gastem dinheiro sim, mas só deste lado da fronteira". Trata-se de um bizarro apelo à união. "É uma crise de todos! Mas primeiro vamos tratar da nossa." O António Costa federalista pró-Bruxelas dá rapidamente lugar ao António Costa proteccionista antiglobalização.

"Exigimos aos nossos parceiros que pensem que todas as economias dependem umas das outras e que não podemos pensar só no nosso umbigo!" ("Mas malta, se calhar, este ano, vão para fora cá dentro.) "A Holanda tem de perceber que este é o momento de pensar na união e não só no interesse nacional! ("Mas, portugueses, se optarem pela nacional, não se esqueçam de parar no Canal Caveira, para ajudar a nossa restauração.") "Lavem a boca antes da falar da Europa de Monet, Schuman, Miterrand e Churchill! ("Mas lavem com Pasta Medicinal Couto, porque realmente é uma excelente marca que nós temos").

Não quero com isto dizer que os portugueses não deveriam, por sua iniciativa, considerar passar férias cá. Neste momento, é arriscado garantir que haverá liberdade de circulação no Verão. O problema é se todos os países a quem António Costa pede solidariedade pensarem assim. Se Emannuel Macron se dirigir aos franceses e disser "caros compatriotas, nos próximos anos, passem férias em Nord-pas-du-Calais a comer queijo" ou se Boris Johnson exigir “não quero saber se o Mar do Norte é gelado! Façam praia em Brighton” quem se trama somos nós. A ideia de que os milhares de trabalhadores que dependem do turismo sobreviverão só com aquilo que resultar do consumo interno é tão utópica como julgar que uma economia dependente do turismo é sólida. O que é certo é que se todos os países decidirem que a partir de agora, turismo bom é entre portas, a grande maioria dos empregos criados nos últimos anos passarão rapidamente de precários a inexistentes.

A garantia de uma quinzena do Algarve não é certamente uma garantia de retoma. O turismo de portugueses em Portugal é bem diferente do turismo de estrangeiros em Portugal. Com a quebra de rendimentos de muitas famílias, é duvidoso que os portugueses desatem a jantar lagosta em marisqueiras, todos os dias no mês de Agosto. Mais, a ideia do "vamos ter Verão, estejam descansados, vem aí o merecido descanso" ignora as pessoas que necessitam, para a sua sobrevivência, do mês de Agosto para trabalhar. Não sei se será positivo que se volte ao país das filas nas praias - desta feita com senha - e de uma Lisboa permanentemente deserta em Agosto.

Além do mais, a afluência de estrangeiros nos últimos anos levou a que o turismo deixasse de ser concebido para turistas internos. Airbnbs com 25 metros quadrados não albergam uma família de Setúbal que queria levar as crianças a conhecer o Porto, nem restaurantes com cataplanas de peixe a 100 euros não convencem famílias do Oeste a dar um saltinho à baixa de Lisboa. Por outro lado, podemos é assistir ao processo de de-gentrificação, com alojamentos locais a serem vendidos ao desbarato e a entrarem no mercado de arrendamento e lojas de souvenir a não conseguir pagar a renda, trespassando o espaço a lojas de ferragens. Vamos sonhando.

É preciso que os destinos turísticos em Portugal deixem de ser hostis aos portugueses, mas também não é possível ignorar a nossa dependência dos visitantes estrangeiros. Bom. Passemos férias cá, mas é melhor não dizer a nenhum amigo europeu sob pena da moda pegar. Caso contrário, voltaremos ao tempo em que se demorava seis horas a chegar ao Algarve.

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