O dia do regresso

Pedro Soares Botelho
Pedro Soares Botelho

Vivo mesmo ao lado de um desses enormes centros comerciais na margem exterior da Circunvalação, no Porto. Durante todo este tempo, fui lá várias vezes. O monumento era um lugar sombrio: os corredores, se não estavam fechados, estavam vazios. Desertos de gente, de fachadas escondidas, com os manequins glamorosos debaixo de coberturas — à espera.

Hoje é o dia do regresso. Não do regresso à normalidade, mas a um posto intermédio. O normal já não existe.

A terceira fase do desconfinamento traz duas grandes alterações: deixa de existir o dever cívico de recolhimento e passam a ser permitidos os ajuntamentos até vinte pessoas — o limite, até agora, era de dez pessoas. Limite que se mantém na Área Metropolitana de Lisboa (ou seja, nos concelhos de: Alcochete, Almada, Amadora, Barreiro, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Moita, Montijo, Odivelas, Oeiras, Palmela, Seixal, Sesimbra, Setúbal, Sintra e Vila Franca de Xira).

Agora, são permitidas as celebrações comunitárias. O teletrabalho — para aqueles que o podem ter — deixa de ser obrigatório. Reabrem os casinos e até os centros de tatuagens.

Volta a ser possível ir ao cinema (se tiver filmes); ao teatro (se estiver aberto) e aos auditórios (se se passar alguma coisa lá dentro). Nestes casos, vai ser também obrigatório usar máscaras, vão existir lugares marcados.

Abrem igualmente os ginásios e academias, bem como as piscinas. Os balneários é que ficam bastante condicionados.

Regressa o pré-escolar.

E, claro: os centros comerciais. Deixam de estar abertas apenas aquela meia dúzia de lojas essenciais que se mantiveram a funcionar. Sobem-se as grades das outras todas — mas num cenário que nunca é equivalente ao que havia antes.

Em Lisboa, os centros comerciais ficam fechados, bem como as Lojas do Cidadão. Também há limites na estrada: "prevê-se que os veículos com lotação superior a cinco pessoas apenas podem circular com dois terços da capacidade, salvo se todos os ocupantes integrarem o mesmo agregado familiar", explica o Conselho de Ministros.

A espaços, vão chegando nesta terceira fase as coisas banais: o futebol, a praia, o resto.

Devagarinho, vamos vendo por aí os indícios do que fomos. Mas mesmo que lutemos para recuperar o tempo perdido — reiniciando os processos, voltando às temporadas de exposições, teatros, filmes, músicas, livros, modas, cozinhas, cuja estreia esteve interrompida —, há qualquer coisa de extemporâneo.

O tempo em que nasceram já não é o tempo delas.

Estamos noutro mundo: cheio de condições de acesso e segurança. Ele há de chegar, o tempo normal. Mas vem lento.

Permitam-me ir buscar um poema, para fechar isto. Um poema ou parte dele, que nas poesias nunca sabemos bem onde começam e onde acabam os pedaços, não fossem eles todos suspiros do mesmo ar.

A manhã trouxe o calor por que esperávamos há tanto tempo. Algumas árvores arriscam um pouco de verde, muito pouco ainda, a antever a diferença que haverá amanhã, daqui a dias, as grandes copas cheias de folhas. Mas tudo se passará quase imperceptivelmente, e não como na passadeira antes de atravessar a rua: “para obter o verde, carregue aqui”. A grande fábrica de verde é lenta, trabalha a desoras, no escuro e não tem (felizmente) nenhum comando à superfície.

Rosa Maria Martelo, Verde II, Matéria (em Siringe, 2017)

O verde é o amanhã, esse lugar para onde atiramos o depois disto tudo, seja ele diferente ou só o mesmo — porém, pejado de esperança.

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