Lisboa no século XVIII é uma espécie de Alfama gigante em que as ruas são estreitas e o piso sinuoso faz-nos andar aos altos e baixos. As construções amontoam-se em altura, sem grande planeamento, nos estendais roupas e nas paredes bacalhaus a secar. Nas ruas imundas, onde a nobreza se mistura com o povo, há mercadores de toda a Europa, de flamencos a espanhóis. Através de uma pequena abertura, numa porta de um convento, podemos ver as freiras a passear pelos claustro, a pararem e oferecerem-nos os doces que confecionavam. Há todo o tipo de mercadorias espalhadas. É dia 1 de novembro de 1755, o último dia desta Lisboa, desta outra Lisboa, a quarta cidade mais importante da Europa, apenas atrás de Londres, Paris e Nápoles, onde na altura viviam cerca de 200 mil pessoas.
O Dia de Todos os Santos é um marco importante num país profundamente católico, onde a religião marca o ritmo dos dias. Os sinos tocam e as pessoas são convidadas a entrar na igreja para missa. O padre chega, acompanhado pelos acólitos e, de costas para as pessoas sentadas nos bancos de madeira, começa a homilia em latim. Até que o chão treme. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Cada um dos abalos é mais longo e devastador que o anterior. O pároco foge, auxiliado pelos jovens acólitos, a igreja desmorona-se e é tomada pelas chamadas causadas pelas velas que compunham o cenário da celebração.
O testemunho na primeira pessoa deste cenário é possível a partir de uma visita ao Quake - Centro Terramoto Lisboa, museu inaugurado no dia 20 de abril e que é uma verdadeira máquina do tempo para o dia que há 266 anos devastou a cidade portuguesa.
Numa experiência imersiva e interativa, através de conteúdos que tiveram a validação de sismólogos da Faculdade de Ciências de Lisboa, entre os quais Susana Custódio e Luís Matias, bem como do historiador André Canhoto Costa, em que o visitante rapidamente se torna numa personagem, é-se convidado a acompanhar o trabalho de investigação de Luís, um homem que durante anos se dedicou ao estudo do terramoto de 1755 e a tudo o que desencadeou, não só em Portugal, mas também no mundo.
A visita, com duração de cerca de hora e meia, começa com a colocação de uma pulseira com uma tecnologia que será parte fundamental da experiência, tornando-a mais intuitiva e completa, passando informações em vários painéis e estações interativas disponíveis ao longo do caminho.
A pulseira tem ainda a particularidade de registar os dados para que, no final, os visitantes possam receber mais informações e curiosidades sobre os temas que mais lhe interessaram, através de um email.
O centro é assim um ponto didático, com a história em que se está envolvido a passar por várias salas que nos apuram os sentidos e os conhecimentos, com demonstrações e informações sobre sismologia, o que fazer e não fazer em caso de sismos e a vivência de dois terramotos que de alguma forma se assemelham ao que aconteceu em Lisboa há mais de dois séculos: o sismo de São Francisco, nos Estados Unidos da América, em 1906, que desencadeou uma série de incêndios que devastaram a cidade, e o sismo de 2011 no Japão, em Tohoku, onde um tsunami atingiu o território e afetou a central nuclear de Fukushima. Tudo isto para nos prepararmos para a máquina do tempo que atravessa alguns dos marcos mais importantes da humanidade, desde a pandemia que vivemos nos últimos anos, passando pelo ataque às Torres Gémeas ou pela chegada do Homem à Lua, antes de chegarmos a 1755 e às ruas de uma outra Lisboa.
Na Lisboa destruída pelo terramoto, sentimos o chão tremer, o calor das chamas, os salpicos da água do tsunami que uma hora e meia depois do terramoto galgou sobre o centro da cidade. Ao mesmo tempo, o investigador Luís vai-nos contando o que aconteceu, para onde foram as pessoas, o que foi feito e o que não foi.
Somos convidados a sentar-nos à mesa com as principais figuras do reino, um conselho onde se destaca o secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo, também conhecido por Marquês de Pombal.
Ali, somos envolvidos no que aconteceu após o terramoto, do desastre em que uma em cada quatro pessoas da cidade faleceu. Ouvem-se os relatos de anónimos, histórias de escravos, de prisioneiros que viram as paredes da cela cair, de comerciantes que enviaram cartas lá para fora para contar o que tinha acabado de acontecer em Lisboa.
É aqui que o museu dá uma outra perspetiva do terramoto de 1755 que vai para além de dar a perceção de como seria estar em Lisboa naquele dia: mostra o impacto que aquele acontecimento teve na cidade e no mundo.
O visitante vê a tomada das providências, medidas adotadas para proteger a população após o terramoto, e que abrangeram diversos tópicos, desde a proteção das pessoas da peste, a prevenção da fome e dos assaltos e o auxílios aos feridos. O conjunto deste pacote de medidas é de tal forma importante que é considerado a origem do que hoje é a Proteção Civil.
Depois das providências, vieram os questionários à população, algo que ficou conhecido como o Inquérito de Marquês de Pombal e que é considerado por muitos a primeira vez na história que se fez uma recolha de dados de forma tão sistemática.
Chegamos à decisão de reconstruir a cidade. De entre as várias opções em cima da mesa, Marquês de Pombal assume aplanar a cidade e optar por uma planta ortogonal, naquele que foi o primeiro plano urbanístico moderno da história. Com ruas largas e retas, nasceu a baixa pombalina que conhecemos hoje.
O terramoto de Lisboa teve contributos para o mundo, um dos maiores terá sido através do iluminismo, levando vários cristãos a questionar a sua fé. Vários filósofos da época, de Voltaire a Kant utilizaram o sismo que devastou a capital portuguesa como exemplo de um mundo centrado no Homem e não em Deus, na razão e não na religião.
“Normalmente olhamos para o tema de 1755 como um desastre, mas, para além de uma catástrofe, tudo isto trouxe muitas coisas positivas. Pela primeira vez na história aplicou-se um pensamento científico para tentar explicar estes fenómenos e a sismologia como nós conhecemos desenvolveu-se a partir desse ano. O berço da sismologia, como a conhecemos, acontece em 1755. Por outro lado, e do ponto de vista do urbanismo, foi o primeiro plano em larga escala. Lisboa tem um papel no mundo a esse nível com um impacto na sociedade. A Europa estava a viver um período iluminista e os pensadores usaram o tema do terramoto para discutir as suas ideias e os seus pensamentos que foram a antecâmara da Revolução Francesa e que mudou radicalmente a Europa e o mundo”, explica Ricardo Clemente ao SAPO24, fundador do museu, juntamente com a sua mulher, Maria Marques.
“Com alguma segurança podemos dizer que o acontecimento de 1755 é um dos marcos mais importantes da história moderna, ao nível do que foi a Revolução francesa ou daquilo que foi a ida do homem à Lua, ao nível do que foi mais recentemente a pandemia ou do que está a ser o momento conturbado de guerra na Europa. Não foi um tema local, foi global e internacional. E essa também é a ambição do Quake. Este museu também tem a ambição de mostrar a quem nos visita a importância que este evento teve no mundo”, sublinha.
"Um dia vai voltar a acontecer"
Ricardo Clemente e Maria Marques, fundadores do Quake - Centro Terramoto Lisboa, explicam que a ideia para criar este museu surge de uma vontade de o casal entrar no setor do turismo e de “contribuir para a cidade”.
“Pensámos em explorar um bocadinho esta parte histórica da cidade e tentar perceber que acontecimento é que tinha feito a diferença na história. Hoje temos Lisboa como temos porquê? Rapidamente chegámos ao terramoto de 1755. Andámos noutros temas, mas achámos realmente que este era o que se associava mais a Lisboa e ao valor da sua cidade. E como tem uma elasticidade tão grande, porque abrange vários temas desde a arquitetura, a história, ciência, achamos realmente que era um tema para ser falado, promovido para quem habita na cidade em que vive sempre a pensar que um dia vai voltar a acontecer”, conta Maria Marques.
“Assim que pegámos neste tema foi quase imediato. Quando começamos a envolver os especialistas nisto, começamos a perceber o contexto geológico de Portugal e de Lisboa, rapidamente somos confrontados que não é uma questão de ‘se’, é quando. Um dia vai voltar a acontecer. E temos aqui outra situação que agrava esse risco, nós como povo não estamos preparados porque culturalmente achamos que não nos acontece a nós. A zona de Lisboa é uma zona de risco sísmico e de sismos que podem acontecer com grande magnitude, mas como a frequência com que eles acontecem é tão baixa, nós achamos que isto só acontece aos japoneses, aos mexicanos, na Indonésia, e achamos que não acontece a nós”, explica Ricardo.
É a partir deste contexto que o museu alarga a experiência imersiva à componente educativa, com a ambição de criar o alerta nos visitantes para um possível cenário de crise sísmica.
“Gostamos que o visitante saia daqui com uma consciência de pequenos gestos como ter em casa um kit de emergência, definir um ponto de encontro, para, se houver uma catástrofe e os telefones falharem, haver um local combinado... São estes pequenos alertas que é importante fazerem parte da cultura nestas novas gerações”, explica Maria.
A loja do museu, que foge um bocadinho ao conceito típico, é um convite a essa preparação. Depois de tudo o que viu e experienciou, o visitante depara-se com uma parede em que, em resumo, são apontados os principais tópicos a ter em conta no caso de um sismo, desde os procedimentos e medidas de segurança aos essenciais de um kit de emergência que deve sempre contar com um rádio a pilhas ou alimentos com longas datas de validade. Já na loja em si não há galos de Barcelos ou porta-chaves com Nossa Senhora de Fátima, ao invés há ração de combate, latas de atum, anti-camuflados, capas coloridas para que num caso de sismo uma pessoa seja facilmente identificada.
Compre-se alguma coisa ou não, dificilmente se sai dali de mãos a abanar, porque será difícil encarar as ruas de Lisboa e as nossas casas com os mesmos olhos.
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