Não se diz "ter aceite"
Na conversa que se propunha sem guião, a única coisa que Samuel Úria tinha preparada foi esta "aula de português". Uma versão da telescola em live de Instagram, por um antigo professor de artes visuais — sim, Samuel Úria já foi professor.
"Ter aceite não se diz. Obrigado por terem aceitado", referiu Úria. E assim se lançou a conversa.
No "apocalipse Covidiano", a casa dos Clã é o sítio a estar
O dia a dia de Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves não mudou muito com as ordens de confinamento. Contaram que já estavam "por casa" a terminar de gravar o próximo disco. "Agora, a grande diferença é que nos faltam os outros quatro macacos dos Clã", referiu a voz da banda.
"Espero não estar a fazer nenhuma inconfidência, mas no apocalipse covidiano a vossa casa é um sítio muito agradável de se estar. Têm o estúdio, terreno, uma burra....", contou Úria, antes de revelar que já esteve na casa do casal para gravar um EP.
"Véspera", o novo disco ou o "estado em que estamos perpetuamente"
O novo disco dos Clã tinha data de lançamento para 3 de abril. Foi adiado, mas ficou nesta conversa a promessa de que ainda o iremos ouvir na totalidade durante a primavera. Samuel Úria, que já o ouviu, via "contactos privilegiados", diz que é um "disco um pouco premonitório" (ou não assinasse ele um dos temas já conhecidos, "Sinais").
"Véspera", é o título do novo trabalho de originais a editar. Ou, como Manuela Azevedo referiu, pode também ser o "estado em que estamos perpetuamente", numa ânsia de "quando chega o dia para sair de casa e a vida retoma alguma normalidade".
Sobre o seu adiamento, explicou que decidiram "deixar o disco a marinar".
"Entretanto os dias vão passando e os estados de emergência vão-se renovando. Mas à medida que vamos conquistando alguma normalidade, pareceu-nos que fazia sentido, mesmo não sendo um lançamento ideal, partilhar o resto das canções em breve", acrescentou.
Um crush que durou o verão e uma palheta que durou muito mais
"Como qualquer bom entrevistador de um talk-show, vou falar um pouco sobre mim e impor informações minhas aos convidados", atirou Samuel Úria, depois de assumir o 'roubo' do baterista dos Clã (para o seu novo disco, também adiado) e antes de partilhar como se 'apaixonou' por Manuela Azevedo.
"O meu manager, o Paulo Salgado, faz sempre questão que conte esta história quando estou convosco. Ele acha que me embaraça muito, mas não me embaraça nada. Talvez em 1998, os Clã foram a Tondela. E eu, na minha tenra idade de 18 anos, fui ver-vos. Estava mesmo na frente do palco e a Manuela sorriu para mim. Foi um crush que durou o verão. Só que nesse concerto fiquei com uma palheta do Hélder, que ficou na carteira muito mais do que um verão".
25 de Abril, "sempre"
Depois de algumas voltas, e a invocação de Sérgio Godinho e de José Mário Branco, Úria chegou ao tema pretendido. Ou à questão, vá. "25 de Abril, sim ou não?".
"Sempre", respondeu prontamente Manuela Azevedo.
"É bom viver num país onde se tem liberdade de expressão, onde se pode dizer o que se quer, onde se pode votar e onde toda a gente tem os seus direitos defendidos. É por isso que me faz comichão quando as pessoas começam a dizer que 'não é assim tão importante' estar a ocupar a Assembleia da República para festejar. Como se isto fosse um feriadinho qualquer. Tendo em conta que a memória das pessoas e a memória dos povos é frágil, tem mesmo de ser lubrificada e estas conquistas essenciais celebradas".
A pergunta era mais geracional do que ideológica, sublinhou depois o músico de Tondela. "[Nós] temos um conceito de liberdade diferente do que talvez tenha a vossa filha. Para ela [a liberdade] é um dado adquirido, e ainda bem que o é, para nós era um privilégio. Não sei se sentem isso", reformulou Úria.
"Por isso é que é importante, quando falamos com a nossa filha, explicar que noutros tempos as coisas não eram assim. E mostrar-lhe o que é que este tipo de celebração significa e o que está a acontecer noutros pontos [do mundo]. Para ela perceber que esta é uma conquista preciosa e que não é garantida", contrapôs Manuela Azevedo.
Justiça para o "Zé da Fisga"
A efeméride do 25 de Abril propiciou a lembrança do pai de Hélder Gonçalves, Fernando Gonçalves, que assinava como "Zé da Fisga", e que Úria apresentou como sendo "um dos melhores cartoonistas portugueses".
O host pediu desculpa por estar a fugir ao tema, mas assumiu o seu fascínio por banda desenhada.
"Não lhe tem sido feita justiça, porque o trabalho do teu pai tem muita qualidade", disse, recomendado a quem estava a assistir que fosse procurar mais sobre o seu trabalho e desenho.
A arte do elogio por Samuel Úria
Ainda no agregado familiar:
"Há uns tempos li que os cães são protetores dos bebés porque conseguem cheirar nos bebés o que sentem de afeição nos donos". Frase estranha, neste contexto, mas Samuel Úria explicou a razão de a trazer à conversa.
"Sou um cão em relação à vossa filha, nela encontro as qualidades dos pais. Ela vai ser grande", esclareceu, salientado depois que "foi o primeiro a acreditar na miúda".
Não deu para perceber na imagem, mas apostamos que os pais, Manuela e Hélder, coraram.
Os efeitos colaterais da pandemia
Mesmo sem guião, Samuel Úria tinha no bolso uma pergunta do SAPO24: Como é que este período pode criar um problema de expressão para os músicos e artistas?
[sim, perguntas com referências musicais dos convidados]
Assumindo como certa a existência de um problema de expressão, Úria reformulou e lançou para para cima da mesa a questão que todos, sobretudo os da classe artística, querem ver respondida: que soluções?
A resposta, bastante aplaudida virtualmente (a contar pelos emojis), veio de Hélder Gonçalves que até aqui tinha estado menos participativo.
"Assim de repente, a coisa está muito direcionada para as redes sociais, pelo menos enquanto elas não colapsarem. Com os media mais mainstream é muito complicado. Se já não havia muito interesse por questões artísticas como música ou teatro, não vai ser agora que isso vai acontecer".
E continuou.
"Pelo menos a curto prazo estamos cingidos às redes digitais. O que nos leva a repensar e a tentar fazê-lo bem. Não vamos conseguir, nas redes sociais, fazer o que fazíamos ao vivo. Não é possível. Há toda uma transcendência que temos em palco que dependem do público. É o que faz um concerto valer a pena. Isso é aquilo que vamos todos sentir mais falta".
Um discurso para os "nossos colegas"
Este tema levou a outra questão, que o compositor desenvolveu e acabou por dirigir aos colegas da indústria.
"85% dos problemas que os artistas tinham já vêm de trás, não são novos. Agora, o que está a acontecer, e é grave, é que a única ou maior fonte de receita desapareceu. Não podemos tocar ao vivo. Ou seja, temos de canalizar a nossa fonte de receita para estes palcos digitais.
É muito importante estarmos unidos e fazermos isso com algum cuidado. Houve alguma precipitação, e continua a haver, de toda a gente começar a oferecer concertos a torto e a direito. A música já estava muito vulgarizada. De todas as artes, é aquela que as pessoas já estão habituadas a não pagar. E nós dependemos disto. A defesa dos direitos de autor, já era e é cada vez mais importante nesta altura".
O lado invisível
"Nós temos um estúdio e podemos continuar a trabalhar. Mas o que é que a nossa técnica de luz pode fazer? E os nossos roadies? As pessoas esquecem-se que há uma equipa à nossa volta", referiu Hélder Gonçalves.
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