Nós, que somos crianças da Internet e porquanto estamos sempre ligados às redes sociais e outros tipos de comunidades virtuais, fomos assistindo às mais diversas manifestações acerca do dia de hoje [domingo]. De todos os quadrantes políticos. Dia de Portugal, Dia da Raça, Dia das Comunidades Portuguesas, Dia do Cidadão Nacional, Dia das Forças Armadas. E se as opiniões se extremavam em relação a cada uma destas celebrações de 10 de junho, pelo menos uma outra colheu unanimidade: a do Dia da Língua Portuguesa. Como diria Pessoa, é essa, afinal, a nossa verdadeira pátria.
No Coliseu dos Recreios, essa mesma pátria foi saudada por um dos seus intérpretes mais fabulosos, Francisco Buarque de Hollanda, cantor, compositor, poeta, ativista, brasileiro de terra e português de fala. Naquele que foi o último concerto de uma série de seis (!) que deu entre Lisboa e Porto, o músico apresentou uma vez mais o espetáculo que construiu em torno de “Caravanas”, álbum que editou no ano passado e que é o seu 38º (!!) de estúdio.
Porque o espetáculo foi pensado de raiz, não existindo espaço para a improvisação, não houve qualquer tipo de surpresa ao longo das duas horas em que Chico Buarque se colocou diante dos nossos olhos, sempre acompanhado por uma banda exímia, que não deixou escapulir qualquer uma das notas que adocicam estas canções. Um espetáculo que começou como terminou, com uma versão de “Minha Embaixada Chegou”, samba de Assis Valente. E que começou com uma longa nota introdutória de um mestre de cerimónias em voz off, até que a cortina se ergue e, no palco, já os músicos se encontram ao leme dos seus respetivos instrumentos.
O tempo foi passando por Chico Buarque. Tanto no seu rosto como na sua voz, é possível vislumbrar já os sulcos habituais de uma vida longa. Mas, mesmo que o tempo não seja meigo para com o corpo terreno, sê-lo-á para com a chama divina que dele brotou: a música. Estas canções, tanto hoje como há vinte, trinta, quarenta anos, continuam a soar-nos extremamente ricas. Talvez não bem canções: são mais poesia musicada. Um sentimento expresso em instrumento de cordas, de sopro, em batuque ou garganta. Sem fogo-de-artifício algum.
O público, que uma vez mais encheu o Coliseu, percebeu isso mesmo e foi recebendo Buarque com ovações atrás de ovações, gritos e silvos atrás de gritos e silvos, palmas atrás de palmas. E mereceu, do músico, o privilégio de escutar ao vivo uma das canções mais belíssimas da história da música brasileira: “Retrato em Branco e Preto”, com letra sua e melodia de Tom Jobim. Chico Buarque teria preferido ao contrário; é o que se depreende quando diz, deste tema, que contém “uma letra que escreveu para uma música que gostava de ter composto”.
De um dueto com Bia Paes Leme, que se ocupou dos teclados (apropriadamente intitulado “Dueto”), passou-se pelo balanço rítmico, de pé descalço na areia, de “A Volta do Malandro” e “Homenagem Ao Malandro”, até chegar a “Jogo de Bola”, canção que ganha todo um novo sentido em semana de Mundial. Criança dos anos 50 e 60, Chico Buarque nem sequer disse que não a um pouco de rock n' roll bebop, com a inclusão de “A História de Lily Braun”.
No final, dedicou o espetáculo a Wilson das Neves, deixando que o jeitinho carioca tomasse conta de si (chapéu e dancinha malandra em palco, ora pois), encantou com “Geni e o Zepelim” e “Futuros Amantes” no encore, e rematou tudo com “Tanto Mar”, canção que não podia faltar num concerto em Portugal - foi composta em 1975, em homenagem à Revolução dos Cravos, que também choveram em palco. Talvez clamando por uma outra revolução, já que nas bancadas superiores alguém desfilara um pano onde se pedia a libertação de Lula da Silva. Haja ou não essa mesma revolução, se há alguém que a pode cantar, é Chico Buarque.
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