PARTE I
DIAS DE LEITE
O Quinto Ano do Reinado do Imperador Chenghua
(1469)
Viver é…
– Mil anos no passado, mil anos no futuro… não importa onde vives ou quão rica ou pobre és. As quatro fases da vida de uma mulher são as mesmas – diz a Venerável Senhora. – Ainda és pequenina, ainda estás nos dias de leite. Quando chegares aos quinze anos, será a altura em que tens de prender o cabelo. A forma como o pentearmos anunciará ao mundo que estás pronta para o casamento. – Sorri-me. – Diz -me, filha, o que vem a seguir?
– Dias de arroz e sal – respondo respeitosamente, enquanto a minha mente divaga.
Eu e a minha mãe estamos sentadas juntas em bancos de cerâmica, sob uma colunata coberta no pátio da nossa casa. É a época das monções e por isso o bocado de céu que consigo ver está carregado de nuvens, o que torna o ar húmido, sufocante. Duas laranjeiras em miniatura crescem lado a lado, em vasos a condizer. Há ainda outros vasos com orquídeas, de caules caídos sob o peso das flores. A chuva está a chegar, mas, enquanto não vem, os pássaros chilreiam na árvore gingko que dá um toque de frescura ao dia de verão, e consigo sentir o cheiro do mar – que só vi em pinturas. No entanto, a fragrância não neutraliza o odor desagradável proveniente dos pés enfaixados da Venerável Senhora.
– Os teus pensamentos estão noutro lugar. – A sua voz parece tão frágil como o seu corpo. – Tens de prestar atenção. – Aproxima-se e pega numa das minhas mãos. – Hoje tens dores? – Quando assinto com a cabeça, ela diz: – A memória da agonia que sentiste durante o tempo em que tiveste os pés enfaixados nunca desaparecerá. Até morreres, haverá dias em que a angústia te visitará… se estiveste muito tempo em pé, se andaste muito, se o tempo estiver prestes a mudar, se não tratares cuidadosamente dos pés. – Aperta-me a mão, compassiva. – Quando latejarem ou doerem, lembra-te de que um dia o teu sofrimento será uma prova de amor para o teu marido. Se te concentrares noutra coisa, distrair-te-ás da dor.
A minha mãe é sábia, e é por isso que todos em casa, incluindo o meu irmão, Yifeng, e eu, lhe chamamos Venerável Senhora, o
título honorário que ela possui como mulher de alguém com o elevado estatuto do meu pai. Mas, se ela acha que eu estou distraída, a verdade é que noto que ela também está.
Chega-nos o som da voz de uma mulher a cantar. É a menina Zhao, a concubina do meu pai, que deve estar a entretê-lo, a ele e aos seus convidados.
– Tu sabes como concentrar-te… quando queres – prosseguiu, por fim, a minha mãe. – É essa capacidade de nos deixarmos absorver totalmente que nos salva. – Faz uma pausa por um momento, enquanto o som de gargalhadas masculinas, com a voz do meu pai a distinguir -se entre um coro apreciativo, gira à nossa volta, como uma névoa. – Vamos continuar? – pergunta.
Respiro fundo.
– Os dias de arroz e sal são os anos mais importantes na vida de uma mulher. Será então que estarei ocupada com os deveres maternos e de esposa…
– Como é o meu caso agora. – A Venerável Senhora inclina a cabeça graciosamente, fazendo os enfeites de ouro e jade pendurados no seu coque tilintarem suavemente. Como é pálida, como é elegante. – Cada dia deve começar cedo. Levanto-me antes do amanhecer, limpo o rosto, bochecho a boca com chá perfumado, trato dos pés, arranjo o cabelo e maquilho-me. A seguir, vou à cozinha, para ter certeza de que os criados acenderam o fogo, e começo a refeição matinal.
Solta a minha mão e suspira, como se estivesse exausta pelo esforço de deixar sair tantas palavras da boca. Respira fundo antes de continuar.
– Memorizar estas responsabilidades é fundamental para a tua educação, mas também podes aprender observando-me a supervisionar as tarefas que têm de ser feitas diariamente: trazer lenha e água, enviar uma serva de pés grandes ao mercado, certificar-me de que as roupas, incluindo as da menina Zhao, são lavadas e tantas outras coisas essenciais para cuidar de um lar. E agora, que mais?
Há já quatro anos que ela me ensina tudo isto, e eu sei a resposta que ela gosta que eu dê.
– Aprender a bordar, a tocar cítara e a memorizar os adágios dos Analectos para Mulheres…
– E também outros textos, para que quando fores para a casa do teu marido já saibas tudo o que precisas de fazer e tudo aquilo que deves evitar. – Remexe-se no banquinho. – Até que chegará a altura em que deverás ficar sentada tranquilamente. Sabes o que é que isso significa?
Talvez seja por estar a sentir uma dor física, mas a ideia da tristeza e da solidão de ficar sentada, tranquila, faz com que os meus
olhos se encham de lágrimas.
– Isso acontecerá quando eu já não puder trazer crianças ao mundo…
– E prolonga-se até à viuvez. Serás aquela que ainda não morreu, à espera de que a morte te permita juntares-te ao teu marido. Isso é…
Uma serva chega com uma bandeja de petiscos ligeiros, para que eu e a minha mãe possamos prosseguir o estudo durante o almoço, sem ter de fazer um intervalo. Duas horas mais tarde, a Venerável Senhora pede-me para repetir as regras de que falámos.
– Ao caminhar, não devo virar a cabeça – recito, sem protestar. – Quando falo, não devo abrir muito a boca. Quando estiver de pé, não devo permitir o farfalhar das minhas saias. Quando estiver feliz, não devo demonstrá-lo com gargalhadas sonoras. Quando estiver zangada, nunca levantarei a voz. Reprimirei qualquer desejo de me aventurar para além das câmaras interiores. Esses quartos são apenas para mulheres.
– Muito bem – elogiou-me a Venerável Senhora. – Lembra-te sempre do teu lugar no mundo. Se seguires estas regras, definir-te-ás como um ser humano verdadeiro e adequado. – A minha mãe fecha os olhos. Também está a sofrer. Só que é demasiado distinta para falar sobre isso.
Um grito do meu irmãozinho interrompe o nosso momento. O Yifeng atravessa o pátio a correr. A sua mãe, a menina Zhao – livre dos seus deveres de entretenimento –, desliza atrás dele. Também tem os pés ligados e os seus passos são tão pequenos que dá a sensação de flutuar…
– É como um fantasma – sussurra a minha mãe, como se me tivesse lido os pensamentos.
O Yifeng atira-se para os braços da minha mãe e enterra o rosto no seu colo, enquanto dá risadinhas. A menina Zhao pode ser a sua mãe biológica, mas a Venerável Senhora, além de ser sua mãe ritual, adotou-o formalmente como filho. Isso significa que o Yifeng fará oferendas e realizará todos os rituais e cerimónias depois de a minha mãe e o nosso pai se tornarem ancestrais no Outro Mundo.
A minha mãe ajeita o Yifeng no colo, limpando-lhe a parte inferior dos sapatos, para que as solas não sujem nem encham de pó o seu vestido de seda.
– É tudo, menina Zhao.
– Venerável Senhora. – A concubina acena a cabeça educadamente e sai, silenciosa, do pátio.
A minha mãe inicia a aula da tarde, que o Yifeng e eu partilhamos. Passaremos a aprender juntos todos os dias, até ele chegar aos sete anos, quando o Livro dos Ritos ordena que os rapazes e as raparigas deixem de se sentar no mesmo tapete ou comer na mesma mesa. Nessa altura, o Yifeng deixará a nossa companhia e mudar-se-á para a biblioteca, para passar as horas com professores particulares, em preparação para os exames imperiais.
– Uma casa deve ser sempre mantida em harmonia, mas todos sabem como isso é difícil – começa a Venerável Senhora. – De
facto, até o carácter escrito que significa problema é composto pelo carácter para telhado com os caracteres de duas mulheres por baixo dele, ao passo que o carácter de uma mulher por baixo de um telhado significa…
– Paz – respondo.
– Muito bem. Um porco por baixo de um telhado significa…
– Prisão.
– Não há um carácter escrito com um homem por baixo do telhado. Quer se trate de um animal ou de uma mulher, somos propriedade de um homem. Nós, mulheres, existimos para lhe dar herdeiros e alimentá-lo, vesti-lo e diverti-lo. Nunca se esqueçam disso.
Enquanto o meu irmão recita poemas simples, eu prossigo com o meu bordado. Espero conseguir esconder a minha desilusão. Sei que a menina Zhao não era a única a entreter o meu pai e os seus amigos. O Yifeng também era exibido. Agora, quando ele se esquece de um verso, a Venerável Senhora olha para mim, para que eu o complete em seu lugar. Desta forma, vou aprendendo o que ele aprende. Sou mais velha e por isso memorizo muito melhor. Até tenho jeito para usar palavras e imagens de poemas quando falo. Hoje, porém, tropeço num verso. A Venerável Senhora aperta os lábios.
– Tu não vais fazer os exames imperiais, nem tornar-te uma estudiosa como o teu irmão – frisou –, mas um dia terás filhos e, para poderes ajudá-los nos seus estudos futuros, tens de aprender agora.
Custa-me dececioná-la quando, num dia bom, consigo recitar poemas do Livro das Odes e leio em voz alta o Clássico da Piedade Filial para Raparigas. Hoje não é um desses dias.
Ao final da tarde, a minha mãe anuncia que é hora de passar à sala de estudo. O Yifeng e eu seguimo-la a uma distância adequada. As dobras do seu vestido ondulam e as suas mangas levantam-se com a brisa – exatamente como numa pintura. O ar move-se o suficiente para nos sentirmos inundados pelo odor que vem dos seus pés enfaixados. Se choro quando as minhas ligaduras estão a ser apertadas, a minha mãe gosta de me lembrar que os pés vão fascinar o meu marido, mesmo sendo possível que deles possa vir a surgir algum odor. Hoje, o cheiro dos pés da minha mãe está longe de ser agradável. Engulo em seco, enquanto uma onda de náusea se apodera de mim.
Não tenho qualquer recordação de alguma vez ter estado fora do nosso complexo residencial, e posso nem sequer vir a atravessar o portão principal até que chegue o dia em que terei o meu cabelo apanhado e serei levada, já casada, para a casa do meu marido, mas não me importo. Adoro a nossa casa, principalmente a sala de estudo, com as suas paredes caiadas, o mobiliário simples e as estantes cheias de livros e pergaminhos. A minha mãe senta-se de um lado da mesa; eu e o meu irmão sentamo-nos à sua frente. Observa enquanto eu moo a tinta na pedra de tinta e a misturo com água, para obter a densidade e a cor escura perfeita. Seguro o pincel com uma mão e com a outra puxo a minha manga para trás, para que não se suje. A Venerável Senhora diz que cada traço de caligrafia deve ser fluido, mas cheio. A meu lado, o Yifeng tenta o seu melhor, mas os seus caracteres são pouco firmes. Verificar o seu trabalho leva-me a cometer o segundo erro do dia. Em vez de um traço que vai ficando mais fino, como a extremidade de uma sobrancelha, faço um borrão no papel. Levanto o pincel, mas mantenho o rosto baixo, olhando para a confusão que fiz e esperando que a minha mãe me diga alguma coisa.
O silêncio continua e eu levanto os olhos. Ela olha pela janela, esquecida de mim, do meu erro ou da irrequietude do Yifeng. Quando está assim, sabemos que pensa nos meus dois irmãos mais velhos, que morreram no mesmo dia, há cinco anos, da doença das flores celestiais – a varíola. Se tivessem sobrevivido, teriam agora dez e doze anos. Se tivessem sobrevivido, talvez o meu pai não tivesse trazido a menina Zhao, eu não teria o Yifeng como meu irmão mais novo e a minha mãe não teria um filho ritual.
A Papoila, a minha serva, entra, e a Venerável Senhora faz um ligeiro aceno. Sem inspecionar o meu trabalho, declara:
– Por hoje é suficiente. Papoila, por favor leva as crianças para que mudem de roupa e depois condu-las à biblioteca, para que vejam o pai.
A Papoila leva o meu irmão à menina Zhao e depois acompanha-me ao meu quarto. O pai comprou a Papoila para mim, por ocasião do meu nascimento. Tem quinze anos e pés grandes. É dona de uns olhos arregalados e obediente. Dorme no chão, aos pés da minha cama, e já muitas vezes me confortou quando eu acordava com um pesadelo. Ajuda-me a vestir, a lavar-me e a comer. Não sei de onde veio, mas a Papoila fará parte do meu dote, o que significa que ficaremos juntas até que uma de nós morra.
Depois de ter estado sentada quase todo o dia, estou irrequieta, mas a Papoila não aceita nada disso.
– Yunxian, é pior que o seu irmão – repreende-me. – Fique quieta, para que eu consiga pentear-lhe o cabelo.
– Mas…
– Não! – Ela levanta um dedo. Lança-me um olhar severo que, contudo, rapidamente se transforma num sorriso rasgado. Ela
estraga-me com mimos. É verdade. – Então, conte-me o que aprendeu hoje.
Faço o melhor que posso, recitando as coisas habituais:
– Quando casar, servirei respeitosamente o meu sogro. Quando falar comigo, não vou olhar para ele. Não me dirigirei a ele, nunca. Vou apenas ouvir e obedecer.
A Papoila chupa os dentes ruidosamente para me dizer que aprova, mas a minha mente está a pensar no que a Venerável Senhora
disse, cedo pela manhã. Lembra‑te sempre do teu lugar no mundo. Eu nasci na família Tan. O meu nome de batismo é Yunxian, o que significa Virtude Leal. A medicina está na minha família há gerações, mas o meu pai escolheu um caminho diferente. Ele é um
estudioso imperial do nível juren – um «homem recomendado», que passou nos exames provinciais. Trabalha como prefeito aqui em Laizhou, que fica perto do oceano, mas a centenas de li (1) da casa ancestral da nossa família, em Wuxi. Tem estudado para
fazer o próximo e mais alto nível dos exames imperiais, que ocorrem a cada três anos, há mais anos do que eu tenho agora. O geomante (2) já escolheu uma data para o meu pai viajar para a capital, onde completará os estudos finais antes do início dos testes. Se for bem-sucedido, o próprio imperador lerá o seu ensaio e anunciará que ele alcançou o nível de estudioso jinshi – um «estudioso apresentado ao próprio imperador» –, premiando-o com esse título. Não sei de que modo as nossas vidas mudarão se isso acontecer, mas sei que a nossa família terá dado mais um passo na escada da vida.
O que mais posso dizer sobre o meu lugar no mundo? Tenho oito anos, ainda sou suficientemente nova para poder usar o cabelo preto penteado com fitas. A Venerável Senhora disse-me que a minha pele é tão delicada como a polpa de um pêssego branco, mas isso não pode ser verdade, já que ela manda a Papoila aplicar unguentos nas minhas três marcas – uma no cimo da testa e outras duas lado a lado, na bochecha direita –, recordações visíveis de que sobrevivi à varíola, ao contrário dos meus irmãos. Os meus pés compensam estes defeitos. São perfeitos. Hoje estou a usar um par de chinelos de seda bordados com flores e morcegos pela minha mãe, para dar sorte.
– E a sua futura sogra? – pergunta a Papoila, dando-me uma pequena cotovelada.
– Sim, sim – replico, voltando-me para a minha serva. – Quando ela se senta, eu devo permanecer de pé. Levantar-me-ei cedo, mas não farei barulho, para não perturbar o seu sono. Irei preparar chá e servir-lho…
A Papoila dá-me uma palmadinha no traseiro, satisfeita por eu estar pronta para me apresentar ao meu pai.
– Por agora chega. Vamos despachar-nos. Não queremos aborrecer o senhor.
A caminho, pegamos no Yifeng, que partilha o quarto com a menina Zhao. Seguimos os três de mãos dadas. Começou, finalmente, a chover, mas nós estamos protegidos pela colunata. O som das gotas de chuva sobre o telhado é reconfortante, e já se sente o ar mais limpo, mais leve, à medida que a humidade vai desaparecendo.
Na biblioteca, os meus pais estão sentados lado a lado, em cadeiras talhadas com simplicidade. Uma mesa de altar repousa contra a parede branca atrás deles. Num vaso de bronze, uma orquídea de verão floresce. A Venerável Senhora tem as mãos cruzadas sobre o colo. Os pés estão apoiados num suporte de brocado e, por baixo do seu vestido, vislumbram-se os chinelos, tão pequenos como os meus. A Venerável Senhora está sempre pálida, mas hoje a sua pele parece quase translúcida. Na testa e sobre o lábio superior vislumbra-se um ligeiro brilho de suor.
O meu pai não parece incomodado com o odor que vem dos pés da minha mãe. Está sentado com as pernas abertas e tem as
mãos pousadas nas coxas, os polegares virados para fora e os restantes dedos virados para dentro. Usa as vestes longas e em camadas próprias da sua posição. Os protetores das extremidades das mangas da túnica são finamente bordados. Um quadrado com um mandarim, também bordado, cobre -lhe o peito, transmitindo a todos os que o veem a sua posição no sistema imperial de funcionários públicos. Faz um gesto para que o Yifeng se aproxime. A Papoila solta-lhe a mão e o Yifeng corre e salta para o colo do nosso pai. Eu nunca faria uma coisa dessas. Perdi a capacidade de correr quando os meus pés passaram a ser enfaixados, mas mesmo que o conseguisse não seria apropriado agir de forma tão descuidada. O meu pai ri. A minha mãe sorri. A Papoila aperta-me a mão, de forma tranquilizadora.
Após cinco minutos, a visita termina. O meu pai não me dirigiu uma única palavra. Não fico magoada. Ambos nos comportámos da maneira adequada. Posso orgulhar-me disso. A Papoila volta a dar a mão ao Yifeng. Estamos prestes a sair quando a minha mãe, subitamente, se levanta. Balança como um tenro talo de bambu sob um vento de primavera. O meu pai olha para ela, interrogativamente. Antes de dizer alguma palavra, ela cai no chão. Exceto as mãos, que estão abertas e moles, e o rosto, tão branco como a lua cheia, ela parece uma pilha de roupa abandonada.
A Papoila grita. O meu pai salta da cadeira, levanta a minha mãe nos braços e leva-a para fora. Enquanto corre pela colunata, grita para que outros criados acorram. Eles chegam de todos os cantos, incluindo um homem e um rapaz de cerca de doze anos. São o quinto e o sexto seres humanos do sexo masculino que já vi. Devem viver aqui, mas eu estou isolada nas câmaras interiores, onde fico protegida dos olhos de rapazes e homens que não sejam o meu pai, o Yifeng e os dois irmãos de quem mal me lembro.
– Leva o meu cavalo e vai buscar o médico! – ordena o meu pai. – Tragam água quente! Não! Tragam água fria! Compressas! Vão buscar a menina Zhao!
O velho e o rapazinho, bem como a cozinheira e a criada da copa, afastam-se. Quando o meu pai chega ao quarto da minha mãe, os restantes servos e eu entramos. O leito conjugal da Venerável Senhora é grande e espaçoso – como uma casinha, com três
quartos pequenos – para uma maior privacidade. Um arco em forma de lua conduz à plataforma de dormir. O pai deita a Venerável Senhora sobre a colcha, estende-lhe os braços ao lado do corpo e ajeita-lhe o vestido, para que a seda lhe esconda os pés. A seguir, alisa-lhe as mechas de cabelo que se soltaram do coque e prende-as atrás das orelhas.
– Acorda, esposa – implora. Nunca o ouvira falar com tanta ternura, nem sequer com o Yifeng. Ele olha para nós, apertados na
primeira antecâmara do leito conjugal. – Onde está a menina Zhao? Vão buscá-la!
Duas servas saem a correr, enquanto outras entram com baldes de água fria e de água quente.
Finalmente, a menina Zhao chega. Toca no ombro do meu pai.
– Será melhor saíres – diz -lhe, voltando-se de seguida para as servas. – Todas, exceto a Yunxian.
O meu pai olha para mim. Vejo algo novo na sua expressão, mas não percebo bem o que é.
– Talvez eu deva levar a rapariga – diz para a concubina.
– Deixa-a aqui. Ela precisa de aprender. – A menina Zhao coloca uma mão na parte inferior das suas costas. – Avisa-nos quando o médico chegar.
Depois de todos se terem ido embora, a menina Zhao olha para mim diretamente, outra coisa inédita.
– Calculei que isto fosse acontecer – diz ela. – Esperemos que, ao desmaiar, a Venerável Senhora nos tenha dado tempo para
podermos ajudá-la.
– Mas o que se passa? – pergunto, timidamente.
– Sei que a sua mãe teve muito cuidado consigo ao ligar-lhe os pés, optando por fazê-lo com as próprias mãos. Muitas vezes uma
mãe pode ficar sentimental quando a filha chora, mas a Venerável Senhora não. Ela fez tudo da maneira correta e a Yunxian não ficou com os pés infetados uma única vez. E agora já sabe como cuidar dos pés…
– A Papoila ajuda-me…
– Mas compreende que é necessário continuar sempre com os cuidados.
– Desenfaixar os pés a cada quatro dias – começo a recitar, sabendo que estas regras são tão importantes como as que dizem respeito às fases da minha vida ou ao modo como me devo comportar com a minha futura sogra. – Lavá-los. Cortar as unhas e limar todos os pontos onde um osso possa furar a pele…
– Quer seja por causa das unhas dos pés ou de um bocado de osso, se a pele rasgar tem de ter ainda mais cuidado para manter a ferida limpa. Caso contrário, apanhará uma infeção. Se ignorar estes cuidados, o pé enfaixado, incapaz de encontrar ar fresco, começará a apodrecer. Algumas mães correm este risco quando ligam os pés das filhas. – Um pouco do orgulho que sinto pelos meus pés desaparece quando ela acrescenta: – A pessoa que atou os meus pés permitiu que isso acontecesse e conseguiu partir-me os dedos mortos. É por isso que os meus pés são tão pequenos, algo que o seu pai aprecia.
Este não é o momento indicado para se vangloriar, mas não posso dizer isso à menina Zhao.
– O que quero com isto dizer é que a infeção se pode instalar, e se uma mãe não estiver vigilante, a sua filha provavelmente morrerá – continua. – Mas as meninas não são as únicas que podem morrer. As mulheres adultas que não cuidam adequadamente dos pés também podem sucumbir.
Com isso, a menina Zhao puxa o vestido da Venerável Senhora para cima, revelando as calças bordadas que tapam a
desagradável protuberância do calcanhar dobrado e do arco do pé esmagado. Esta massa de carne inútil e horrível deve permanecer escondida, e vê-la faz-me lembrar de algo que a Venerável Senhora me disse enquanto me enfaixava os pés: «Os nossos pés não encolhem nem desaparecem. O que acontece, simplesmente, é que os ossos são movidos e manipulados para criar a ilusão de lírios dourados.»
A menina Zhao desata a perna de uma das calças e afasta-a, deixando à vista rios incandescentes de vermelho que sobem pela
perna da minha mãe. O que me assusta ainda mais é ver-lhe o estado da barriga da perna. É tão fina como uma corda, bastante mais esguia e disforme do que a minha. Estendo a mão para tocar no que me parece tão visivelmente errado, mas a menina Zhao agarra-me o pulso e afasta-me. Pega num dos pés da minha mãe. Parece minúsculo na sua mão.
– As nossas pernas ficam definhadas porque os pés não conseguem aguentar o que está por baixo da pele – declara a menina
Zhao. – Não tem de se preocupar com isso. O problema neste caso é que a sua mãe está com uma infeção.
Esforço-me por compreender. A minha mãe é respeitadora em todos os sentidos, inclusive no cuidado com o corpo. Ela nunca
ignoraria os próprios pés.
– Vou desenfaixar o pé dela – explica a menina Zhao. – Está preparada?
Quando aceno com a cabeça, ela retira-lhe o sapato e entrega-mo. O cheiro piora. A concubina engole em seco e começa a desenrolar a gaze de três metros de comprimento. A cada camada removida, o cheiro da decomposição fica mais forte. Conforme a menina Zhao se aproxima mais da pele, o pano surge manchado de amarelo e verde. Finalmente, o pé está nu. Uma lasca irregular de osso sobressai do lado esquerdo do centro do pé. Livre das amarras – e eu não consigo imaginar a dor que a minha mãe devia sentir –, o pé incha diante dos nossos olhos.
– Pegue no balde.
Faço o que me mandam. A menina Zhao move suavemente a perna da minha mãe para que fique pendurada na lateral da cama e possa mergulhar-lhe o pé na água. A minha mãe mexe-se, mas não acorda.
– Vá buscar os unguentos e pós da Venerável Senhora ao seu toucador.
Obedeço. A concubina do meu pai despeja na água um pouco do mesmo adstringente que a Papoila usa nos meus pés. É feito de raiz de amoreira moída, tanino e olíbano. Quando o médico chega, a menina Zhao e eu já lhe secámos o pé, deitando-lhe depois um pouco de alume entre os dedos e sobre a lesão, e pousando-o de seguida sobre uma almofada. A minha mãe agitou-se de cada vez que lhe mexemos, mas não abriu os olhos.
– Fique aqui – diz a menina Zhao. – Vou falar com o seu pai, para ver o que deseja fazer. Um médico do sexo masculino não
pode ver ou tocar uma doente do sexo feminino. É necessário um intermediário. Muitas vezes o marido é o escolhido, mas eu não me importo de o fazer.
Assim que ela sai, a minha mãe abre os olhos.
– Não quero aquela mulher no meu quarto – diz, debilmente.
– Vai lá fora. Diz ao teu pai que ela não pode ser a intermediária.
Saio para o corredor. Continua a chover e eu engulo o ar fresco. Mesmo assim, o cheiro da carne podre da minha mãe cola-se-me ao fundo da garganta. O meu pai e a menina Zhao conversam com um homem, que deve ser o médico. É o sétimo homem que vejo. Usa uma veste comprida de um tecido azul-escuro. O cabelo grisalho cai-lhe sobre os ombros curvados. Tenho medo de me aproximar, mas preciso de o fazer. Aproximo-me do meu pai, puxo-lhe a manga e digo:
– A Venerável Senhora está acordada e pede que eu seja a intermediária.
– Prefeito Tan, seria apropriado que cumprisse esse dever – diz o homem que creio ser o médico. Porém, ao ver os olhos do meu
pai encherem-se de lágrimas, volta-se para a menina Zhao. – Calculo que tenha alguma experiência nas doenças que afligem as
mulheres.
Eu ainda sou uma criança, mas tenho de honrar o desejo da minha mãe.
– A Venerável Senhora quer…
O meu pai bate com as costas de uma mão na palma da outra, para me impedir de dizer mais uma palavra. Silenciosamente, pondera as possibilidades.
– Doutor Ho, vai recorrer à minha filha – diz, e de seguida baixa o olhar para mim. – Vais repetir à tua mãe exatamente o que
o médico disser e depois repetes ao médico o que a tua mãe disser. Compreendeste?
Aceno com a cabeça, solenemente. A sua decisão reflete o amor que sente pela minha mãe. Tenho a certeza.
Os adultos trocam mais algumas palavras e a seguir o meu pai é levado pela menina Zhao.
O médico faz-me uma série de perguntas, que eu levo à Venerável Senhora.
– Não, não comi alimentos picantes. E podes dizer-lhe que durmo bem. Não sofro com emoções excessivas.
Ando para trás e para a frente, entre o doutor Ho, na colunata, e a minha mãe, deitada na cama. As perguntas – e as respostas –
parecem ter pouco que ver com a infeção da minha mãe. Fico intrigada por ela não fornecer qualquer informação sobre o problema.
Considerando ter já as necessárias informações, o médico passa uma receita. A criada da copa é enviada a uma farmácia para recolher as ervas para a preparação de uma fórmula. A cozinheira prepara a decocção e, algumas horas depois, quando fica pronta, é levada para o quarto da minha mãe. Levo a chávena aos seus lábios e ela dá alguns goles, antes de voltar a cair sobre o travesseiro.
– É tarde – diz-me com voz suave. – Devias ir para a cama.
– Deixe-me ficar. Eu vou segurando na chávena.
Ela vira a cabeça para os painéis de madeira na parede do fundo do leito conjugal. Os seus dedos pressionam um deles, que oscila, preguiçosamente, na respetiva moldura.
– Quando acabares de lavar o rosto, já terei terminado a bebida.
Vou para o meu quarto, visto a roupa de dormir, calço os chinelos, deito-me e aninho-me entre o colchão de penas de ganso e
uma colcha de algodão. Estou esgotada por tudo o que vi e sinto que vou adormecer. Não sei quanto tempo passou até acordar
abruptamente com o barulho de pessoas a correr. No meio da escuridão, consigo ver a Papoila a sentar-se e a bocejar. Acende a lamparina a óleo. A chama crepitante lança sombras dançantes nas paredes. Vestimo-nos rapidamente e saímos para o corredor. A chuva parou, mas está escuro. Os pássaros a cantar nas árvores dizem-me que amanhece.
Assim que chegamos ao quarto da Venerável Senhora, a cozinheira está a sair apressada e vira-se tão depressa que quase choca
connosco. Cambaleio sobre os meus pés enfaixados, desequilibrada. Coloco uma mão na parede para me segurar. Quando ela me vê, seca as lágrimas do rosto com as costas das mãos.
– Lamento muito. Lamento muito.
O ambiente torna -se mais agitado quando a menina Zhao atravessa o pátio com o doutor Ho atrás de si. Sem se deterem, entram no quarto da Venerável Senhora. Começo a avançar.
– Não entre aí – diz a cozinheira, mas eu passo por ela e atravesso a porta. O cheiro é algo que nunca esquecerei.
Foi pendurada uma cortina à frente do terceiro compartimento do leito conjugal. O meu pai está sentado num banco à sua frente. O braço nu da minha mãe está pousado no seu colo, com a palma da mão voltada para o teto. O doutor Ho diz ao meu pai para envolver o pulso da Venerável Senhora num lenço de linho. Assim que o meu pai o faz, o médico dá um passo à frente e coloca três dedos sobre o lenço. Fecha os olhos para se concentrar, mas como poderá sentir o que quer que seja através do pano?
Desvio o olhar e reparo na chávena que levei à minha mãe na noite anterior.
O meu coração bate com força no peito quando percebo que ela não bebeu nem mais um gole.
Durante os dois dias seguintes, todos na casa andam atarefados. Os servos andam de um lado para o outro. São preparadas
mais ervas para chás «revigorantes». Mais uma vez, enviam-me como intermediária para fazer as perguntas do doutor Ho e regressar para junto dele com as respostas da Venerável Senhora. Nada ajuda. A minha mãe continua a enfraquecer. Quando lhe toco na mão ou na face, sinto um calor ardente. O pé dela, ainda apoiado sobre um travesseiro, cresceu até ao tamanho de um melão. Mas um melão partido, que exala uns fluidos com um cheiro desagradável. Uma característica valorizada num pé perfeitamente enfaixado é a fenda que se forma quando os dedos recolhem para trás, na direção do calcanhar. Idealmente, deve ter profundidade suficiente para permitir que uma grande moeda de prata deslize lá para dentro.
Agora, uma substância viscosa e sangrenta escorre da fissura, enquanto as riscas vermelhas continuam a subir-lhe pela perna. À medida que as horas vão passando, a Venerável Senhora vai ficando menos interessada nas palavras que lhe são dirigidas, virando o rosto para a parede do fundo da sua cama fechada. Sou autorizada a permanecer a seu lado, para confortá-la e deixá-la sentir que não está sozinha.
Ela murmura nomes.
– Mama. Baba. – Quando ela chama pelos meus irmãos que morreram, o meu dedo indicador procura as cicatrizes das flores celestiais no meu rosto.
Na quarta noite, o meu pai, a menina Zhao e o Yifeng entram. As lágrimas mancham as faces empoadas da menina Zhao. Mesmo
quando o seu rosto tem uma expressão triste, ela continua linda. O meu pai morde a parte interior das bochechas, tentando controlar as emoções. O Yifeng é demasiado novo para compreender o que se passa e galopa em direção à cama. O meu pai pega-lhe, antes que ele possa perturbar a nossa mãe. A Venerável Senhora levanta um braço e toca-lhe numa bota.
– Lembra-te de mim, filho. Faz oferendas por mim.
Quando o trio se vai embora, só a Venerável Senhora, as nossas duas servas e eu permanecemos. As luzes estão baixas. O suave plim‑plim da chuva no telhado enche a sala. A respiração da minha mãe fica mais lenta. Após cada nova inspiração, uma longa pausa. Outra inspiração, uma longa pausa. Mais uma vez, os nomes dos que partiram libertam-se dos seus lábios. Não sei se ela está à procura deles ou se está a responder às suas chamadas, vindas da sua casa no Outro Mundo.
De repente, vira-se para mim. Os seus olhos arregalam-se. Pela primeira vez em horas, está realmente aqui.
– Aproxima-te – pede, estendendo-me a mão. Seguro-lha e inclino-me para ouvir. – Lamento que a vida seja como um raio de sol a passar através de uma fenda na parede e lamento não viver para te ver tornares-te esposa e mãe. Não passaremos pelas tristezas
das separações nem pelas alegrias das reuniões. Não poderei ajudar-te quando tiveres desilusões, nem alegrar me contigo em momentos de felicidade.
Fecha novamente os olhos e deixa a cabeça cair, afastando-se de mim, mas sem me soltar a mão. Pelo contrário, mesmo enquanto
murmura os nomes dos mortos, aperta-a e eu aperto também a sua.
– Viver é sofrer – sussurra. É a sua última frase coerente. – Mama, Mama, Mama – chama. Balbucia o nome do meu irmão: – Yifeng. Yifeng. Vem! – Agora já não me chama.
Sinto-me exausta, mas continuo vigilante, apesar da dor que sinto nos pés. Por mais cansada que esteja, quero partilhar a sua
dor. Mãe e filha. Vida e morte. Na escuridão profunda da noite, a Venerável Senhora dá o seu último suspiro, tendo completado vinte e oito anos de idade.
Quase me sinto dominada por sentimentos de impotência e culpa. Eu devia ter sido mais – um filho homem, do próprio sangue da Venerável Senhora, por quem valeria a pena viver. Eu devia ter sido capaz de fazer mais para ajudá-la.
(1) Li, ou milha chinesa, é uma unidade de distância tradicional chinesa. Variou consideravelmente ao longo do tempo, mas de um modo geral correspondia a cerca de um terço de uma milha inglesa. Atualmente, tem um comprimento padronizado de meio quilómetro. (N. da T.)
(2) Aquele que se dedica à adivinhação através de linhas e figuras traçadas no solo. (N. da T.)
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