1

Naquele dia, seis morreram e um ficou ferido. Primeiro, a Mamã e a Vó. Depois, um universitário que correra para impedir o homem. Logo de seguida, dois homens de uns cinquenta anos que estavam na dianteira do desfile do Exército da Salvação, depois, um polícia. Finalmente, o próprio homem. Ele decidira ser a última vítima da sua carnificina maníaca. Esfaqueou-se a si mesmo no peito com força e, como as outras vítimas, morreu antes de a ambulância chegar. Vi simplesmente tudo isto acontecer à minha frente.

Fiquei apenas ali parado, de olhar vazio, como sempre.

2

O primeiro incidente ocorreu tinha eu seis anos. Os sintomas já estavam presentes muito antes, mas foi nessa altura que vieram, por fim, à tona. Naquele dia, a Mamã deve ter‑se esquecido de me ir buscar ao infantário. Mais tarde, disse-me que fora visitar o Papá, depois de todos aqueles anos, para lhe dizer que ia finalmente deixá-lo; não que quisesse andar com outra pessoa ou coisa parecida, mas, mesmo assim, seguiria em frente. Ao que parece, disse tudo aquilo enquanto esfregava as paredes desbotadas do mausoléu dele. Enquanto o seu amor chegava ao fim de uma vez por todas, eu, o convidado indesejado daquela paixão jovem, era esquecido.

Depois de todas as crianças se terem ido embora, deixei o jardim de infância por minha própria iniciativa. Tudo aquilo de que o meu eu de seis anos conseguia lembrar-se de casa era que ficava algures sobre uma ponte. Fui até à passagem aérea e fiquei parado com a cabeça pendurada por cima da balaustrada. Observei os carros passarem debaixo de mim. Aquilo fazia-me lembrar alguma coisa que vira em algum lugar. Depois, juntei o máximo de saliva que consegui. Fiz pontaria a um carro e cuspi. O cuspo evaporou-se muito antes de atingir o carro, mas mantive os olhos na estrada e continuei a cuspir até me sentir tonto.

— O que estás a fazer? Isso é nojento!

Ergui os olhos e vi uma mulher de meia-idade lançar-me um olhar furioso e depois seguir o seu caminho, passando por mim como os carros lá em baixo, e fui deixado sozinho de novo. As escadas da passagem aérea abriam‑se em todas as direções. Perdi o rumo. O mundo que via lá em baixo era de um tom de cinza gélido, para a esquerda e para a direita. Alguns pombos voaram por cima de mim. Decidi segui‑los.

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Em maio, a propósito das comemorações dos 500 anos de Camões, o clube vai olhar de outra forma para o autor do poema épico "Os Lusíadas", através do romance de Frederico Lourenço.

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Quando percebi que estava no caminho errado, já fora demasiado longe. No jardim de infância, estava a aprender uma canção chamada Vai Caminhando. «A Terra é redonda, vai, vai andando em frente», e, assim como a letra, pensei que, de alguma forma, chegaria a casa se continuasse apenas a caminhar em frente. Teimosamente, continuei a dar os meus pequenos passos.

A estrada principal levava a um beco estreito, ladeado por casas antigas com paredes a desmoronarem‑se, todas marcadas com números aleatórios e a palavra «desocupado» a tinta vermelha. Não havia ninguém à vista. De repente, ouvi uma exclamação, «ah», em voz baixa. Não sei bem se era «ah» ou «uh». Talvez fosse «argh». Foi um brado baixo e curto. Caminhei em direção ao som, que foi ficando mais alto conforme me aproximava, e o som mudou para «urgh» e «eeeh». Dobrei a esquina sem hesitação.

Estava um miúdo caído no chão. Um miúdo pequeno, cuja idade não consegui adivinhar, mas estava coberto de sombras negras, ora sim, ora não, repetidamente. Estava a ser espancado. Os gritos breves não eram dele, vinham das sombras que o cercavam, parecendo mais gemidos de esforço. As sombras pontapeavam‑no e cuspiam‑lhe em cima. Depois, descobri que eram só adolescentes, pouco mais velhos que o miúdo, mas, naquele momento, as sombras pareciam altas e enormes como adultos.

O miúdo não resistia nem emitia qualquer ruído, como se se tivesse habituado à sova. Era atirado de um lado para outro como uma boneca de trapos. Uma das sombras meteu‑lhe o cotovelo nas cos-telas como um golpe final. Depois, foram‑se embora. O miúdo estava coberto de sangue, como uma camada de tinta vermelha. Aproximei‑me. Parecia mais velho do que eu, uns nove ou dez anos, quase o dobro da minha idade. Mas eu sentia que ele era mais novo. O peito subia‑lhe e descia‑lhe rapidamente, a respiração curta e rápida, como a de um cachorrinho recém‑nascido. Era óbvio que estava em perigo.

Voltei para o beco. Ainda estava vazio — só as letras vermelhas nas paredes cinzentas me perturbavam os olhos. Depois de vaguear durante um bom bocado, encontrei finalmente uma lojinha de esquina. Abri a porta a correr e entrei.

— Com licença.

Na televisão, estava a dar o programa Jogo de Família. O lojista soltava tantas gargalhadas enquanto assistia que me não deve ter ouvido. Os convidados do programa participavam num jogo em que uma pessoa com tampões nos ouvidos tinha de adivinhar as palavras que os outros diziam recorrendo à leitura labial. A palavra era «trepidação». Não faço ideia porque é que ainda me lembro disto. Naquela altura, eu nem sabia o que significava. Uma das mulheres não parava de dar palpites errados e de arrancar gargalhadas à plateia e ao lojista. Finalmente, o tempo acabou, e a equipa dela perdeu. O lojista estalou a língua, talvez por se sentir mal por ela.

— Senhor — chamei‑o novamente.

— Sim? — Virou‑se finalmente.

— Está um menino caído no beco.

— A sério? — disse ele, com ar indiferente, e sentou‑se.

Na televisão, as equipas estavam prestes a começar outra partida de um jogo com grande pontuação que poderia dar a volta ao resultado.

— Talvez morra — disse eu, remexendo num caramelo da montra.

— Ai sim?

— Sim.

Olhou-me nos olhos apenas nesse momento.

— Onde aprendeste a dizer essas coisas tão medonhas? Mentir é feio, rapazinho.

Fiquei em silêncio durante algum tempo, tentando encontrar palavras para o convencer. Mas eu era demasiado novo para ter muito vocabulário e não conseguia pensar em nada que fosse mais verdadeiro do que o que já dissera.

— Talvez ele morra rapidamente.

O máximo que conseguia fazer era repetir‑me.

3

Esperei que o programa acabasse enquanto o lojista chamava a polícia. Quando ele me viu a mexer de novo no caramelo, barafustou, mandando‑me ir embora se não ia comprar nada. A polícia não teve pressa em chegar — mas eu só conseguia pensar no miúdo deitado no chão frio. Já estava morto.

A questão é: ele era filho do lojista.

Fiquei sentado num banco na esquadra, a balançar as pernas. Iam para a frente e para trás, levantando uma brisa fria. Já estava escuro, e sentia‑me sonolento. Quando estava prestes a adormecer, a porta da esquadra abriu‑se, e a minha mãe apareceu. Soltou um grito quando me viu e apertou‑me a cabeça com tanta força que me doeu. Antes que pudesse aproveitar completamente o momento do nosso reencontro, a porta abriu‑se mais uma vez e surgiu o lojista, agarrado por polícias. Urrava, com o rosto coberto de lágrimas. A sua expressão era bem diferente da anterior, quando estava a ver televisão. Caiu de joelhos, a tremer, e esmurrou o chão. De repente, pôs‑se de pé num pulo e gritou, apontando o dedo para mim. Eu não conseguia perceber muito bem o seu discurso desconexo, mas o que percebi foi algo como:

— Os polícias teriam aparecido a tempo se tivesses falado a sério!

Livro: "Amêndoas"

Autor: Won-pyung Sohn

Editora: Presença

Data de Lançamento: 8 de maio de 2024

Preço: € 15,90

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O agente ao meu lado encolheu os ombros.

— Como é que uma criança do jardim de infância poderia saber? — perguntou e conseguiu impedir que o lojista desabasse no chão.

Mas eu não concordava. Eu falara muito a sério. Sempre. Em nenhum momento sorrira ou exagerara. Não conseguia compreender por que motivo ele estava a criticar‑me por causa daquilo, mas, aos seis anos, não conhecia as palavras necessárias para formular essa pergunta numa frase completa, por isso, fiquei calado. Em vez disso, a Mamã levantou a voz, transformando a esquadra num manicómio com o alvoroço de um pai que perdera o filho e de uma mãe que encontrara o dela.

Naquela noite, fiquei a brincar com os meus blocos, como sempre. Tinham o formato de uma girafa e podiam transformar‑se num elefante se eu lhes torcesse o longo pescoço para baixo. Senti a minha mãe a fitar-me, com os olhos a percorrerem todas as partes do meu corpo.

— Tiveste medo? — perguntou.

— Não — respondi.

Depressa se espalharam boatos sobre o incidente — especificamente, que eu não hesitara sequer diante da imagem de alguém a ser espancado até à morte. A partir de então, os medos da Mamã tornaram-‑se realidade, um após outro.

As coisas pioraram quando entrei na escola primária. Um dia, a caminho de casa, uma menina que caminhava à minha frente tropeçou numa pedra. Estava a bloquear o caminho, por isso parei e examinei a bandolete do Rato Mickey que ela usava enquanto esperava que se levantasse. Mas ela ficou apenas ali sentada, a chorar. Por fim, a mãe dela apareceu e ajudou‑a a levantar-se. A mulher olhou-‑me, estalando a língua.

— Vês a tua amiga cair e nem lhe perguntas se está bem? Parece que os boatos são verdade, há mesmo qualquer coisa de estranho contigo.

Não consegui pensar em nada para dizer, por isso não disse nada. As outras crianças sentiram que algo estava a acontecer e reuniram-se à minha volta, com os seus sussurros a perfurar‑me os ouvidos. Deviam estar a repetir o que a mãe da menina dissera, imagino. Foi nessa altura que a avó chegou para me salvar, aparecendo do nada como a Mulher‑Maravilha, protegendo-‑me.

— Cuidado com a língua! — barafustou ela com a sua voz rouca. — Ela só teve o azar de tropeçar. Quem pensa que é para repreender o meu menino?

A avó também não se esqueceu de dar uma palavrinha às crianças.

— Para onde estão a olhar, suas pestes?

Quando nos afastámos, vi que tinha os lábios bem apertados.

— Vó, porque é que as pessoas me chamam esquisito?

Os lábios dela relaxaram.

— Talvez seja porque és especial. As pessoas não suportam quando alguma coisa é diferente, aigoo, meu monstrinho adorável.

Ela abraçou-me com tal força que as costelas me doeram.

A minha avó chamava-me sempre monstro. Para ela, não era uma coisa má.

4

Para ser sincero, demorei algum tempo a compreender a alcunha que a minha avó me dera com tal afeto. Nos livros, os monstros não eram adoráveis. Na realidade, os monstros eram muito diferentes de tudo o que fosse adorável. Perguntava a mim próprio porque é que ela me chamava assim. Mesmo depois de ter aprendido o termo «paradoxo» — que significava juntar ideias contraditórias —, fiquei confuso. A ênfase recaía em «adorável» ou em «monstro»? De qualquer forma, ela disse que me chamava assim por amor, por isso decidi confiar nela.

Caíam lágrimas dos olhos da Mamã à medida que a avó ia contando sobre a menina do Rato Mickey.

— Eu sabia que este dia haveria de chegar... só não esperava que fosse tão cedo...

— Ah, deixa-‑te de disparates! Se queres choramingar, faz isso no teu quarto e fecha a porta!

Aquilo parou com o choro da Mamã por um momento. Ela olhou de relance para a minha avó, um pouco surpreendida com o seu acesso de raiva repentino. Então, começou a chorar ainda mais. A avó estalou a língua e abanou a cabeça, com os olhos a descansarem num canto do teto, soltando um suspiro profundo. Acontecia muito entre elas.

Era verdade, a Mamã andava preocupada comigo havia já algum tempo. Isso porque sempre fui diferente das outras crianças — diferente desde o nascimento, até, porque:

Eu não sorria.

Inicialmente, pensou que eu fosse apenas lento no meu desenvolvimento. Mas alguns livros sobre orientação parental disseram-lhe que um bebé começa a sorrir três dias depois de nascer. Ela contou os dias — já haviam passado quase cem.

Como uma princesa de conto de fadas amaldiçoada para não sorrir, não vacilei. E, como um príncipe de alguma terra longínqua tentando conquistar o coração da sua amada, a Mamã tentou de tudo. Tentou bater palmas, comprou chocalhos coloridos e até fez danças palermas ao som de músicas infantis. Quando se cansava, ia até à varanda e fumava, um hábito que tivera dificuldade em largar, depois de descobrir que estava grávida de mim. Uma vez vi um vídeo que a avó filmou naquela época em que a Mamã se estava a esforçar muito, e eu me limitava a olhar para ela. Os meus olhos eram profundos e demasiado calmos para os de uma criança. A Mamã não conseguia que eu sorrisse, não importa o que fizesse.

O médico disse que eu não tinha nenhum problema em particular. Tirando a falta de sorrisos, os resultados dos testes mostravam que a altura, o peso e o desenvolvimento comportamental eram todos normais para a minha idade. O pediatra do nosso bairro fez pouco caso das preocupações da minha mãe, dizendo que não se transtornasse, porque o seu bebé estava a crescer muito bem. Durante algum tempo depois disso, a Mamã tentou consolar-se dizendo que eu era apenas um pouco mais sossegado do que as outras crianças.

Então, aconteceu algo perto do meu primeiro aniversário, o que provou que ela tivera razão em se preocupar.

Nesse dia, a Mamã pusera uma chaleira vermelha cheia de água quente na mesa. Virou as costas para misturar o leite em pó. Eu estendi a mão para a chaleira, e ela tombou da mesa, caindo no chão, salpicando água quente por todo o lado. Ainda tenho uma leve marca de queimadura, como uma medalha daquele dia. Gritei e chorei. A Mamã pensou que eu ficaria com medo de água ou de chaleiras vermelhas a partir desse momento, como aconteceria com uma criança normal. Mas não fiquei. Não tinha medo de água nem de chaleiras. Continuei a estender a mão para a chaleira vermelha sempre que a via, quer ela tivesse água gelada ou quente.

As evidências continuavam a acumular-se. Havia um velho de um só olho que vivia no andar por baixo do nosso, com um cão grande e preto, que ele mantinha preso ao poste no pátio. Olhei profundamente e sem medo para as pupilas branco‑leitosas do velho e, quando a Mamã me perdeu de vista por um momento, estendi a mão para tocar no cão, que arreganhou os dentes e rosnou. Mesmo depois de ver a criança da casa ao lado ser mordida e sangrar por ter feito exatamente o mesmo. A minha mãe tinha de estar sempre a intervir.

Depois de vários incidentes como este, a Mamã começou a preocupar‑se que eu pudesse ter um QI baixo, mas não havia nenhuma outra prova. Então, como qualquer mãe, tentou encontrar uma forma de ver as suas inseguranças em relação ao filho de maneira positiva.

«Ele é só um pouco mais destemido do que as outras crianças.» Foi assim que me descreveu no seu diário.

Mesmo assim, a ansiedade de qualquer mãe dispararia se o seu filho não sorrisse até ao quarto aniversário. A Mamã pegou‑me na mão e levou-‑me a um hospital maior. Esse dia é a primeira memória que tenho gravada no meu cérebro. É desfocada, como se vista debaixo de água, mas de quando em quando ganha nitidez, assim:

Um homem de bata branca de laboratório senta‑se à minha frente. Radiante, começa a mostrar‑me diferentes brinquedos, um de cada vez. Balança alguns deles. De seguida, bate‑me no joelho com um martelinho. A minha perna dá um pontapé mais alto do que eu achava possível. Então, põe-me os dedos debaixo das axilas. Faz‑me cócegas, e eu rio-me um pouco. Depois, mostra-me fotografias e faz-me perguntas. Ainda me lembro nitidamente de uma das fotos.

— O menino nesta fotografia está a chorar porque a mãe dele se foi embora. Como achas que se está a sentir?

Não sabendo a resposta, ergo os olhos para a Mamã, sentada ao meu lado. Ela sorri para mim e afaga‑me o cabelo, mas morde discretamente o lábio inferior.

Alguns dias mais tarde, a Mamã leva‑me a outro lugar, dizendo que vou poder pilotar uma nave espacial, mas acabamos noutro hospital. Pergunto porque me está a levar para lá quando nem sequer estou doente, mas ela não responde.

Lá dentro, mandam‑me deitar em cima de algo frio. Sou sugado para dentro de um tanque branco. Bip bip bip. Ouço sons estranhos. Foi assim a minha viagem para o espaço. Acabou por ser aborrecida.

Nesse momento, a cena muda. De repente, vejo muitos outros homens de bata branca. O mais velho entre eles dá‑me uma fotografia a preto‑e-branco baça, dizendo que é a parte de dentro da minha cabeça. Que mentiroso. É claro que não é a minha cabeça. Mas a minha mãe continua a assentir, como se acreditasse numa mentira tão óbvia. Sempre que o tipo velho abre a boca, os mais novos em volta fazem anotações. Enfim, começo a ficar um pouco entediado e remexo o pé, pontapeando a mesa do velho. Quando a Mamã me põe a mão no ombro para me fazer parar, ergo os olhos e vejo que está a chorar.

De tudo naquele dia, só consigo lembrar‑me do choro da Mamã. Ela chora e chora e chora. Ainda está a chorar quando voltamos para a sala de espera. Estão a dar desenhos animados na televisão, mas não consigo concentrar‑me por causa dela. O defensor do Universo está a combater o tipo malvado, mas ela não faz senão chorar. Finalmente, um velho a dormitar ao meu lado acorda e grita-lhe: «Pare de se fazer de vítima, sua mulher barulhenta, não aguento mais!» Funciona. A Mamã torce os lábios como uma adolescente a levar uma descompostura, tremendo em silêncio.