O escritor escocês Douglas Stuart, 45 anos, designer de moda em Nova Iorque, onde vive há 20 anos, falou, em entrevista à agência Lusa, da sua infância passada no seio da classe operária de Glasgow, e marcada pela homofobia de que foi vítima, pelo alcoolismo da mãe e pela pobreza, um percurso semelhante ao da personagem do seu romance, mas que não faz deste um trabalho autobiográfico.
As primeiras páginas do livro, editado este mês em Portugal pela Alfaguara, apresentam Shuggie Bain, um jovem de 16 anos, que vive num pequeno quarto subalugado, frio e húmido, nos subúrbios da cidade escocesa de Glasgow e que trabalha na charcutaria de um supermercado.
O autor dá ao leitor a imagem de um jovem que vive à margem, para depois o transportar até à sua infância, passada nos anos 1980, na era pós-industrial, quando a outrora próspera cidade mineira sufoca sob as políticas da conservadora Margaret Thatcher, que lançaram milhares de famílias na miséria.
Filho mais novo de uma mãe solteira, “cruelmente abandonada” por um marido mulherengo e controlador, sem emprego e com três filhos para criar, cresce a ver a mãe afundar-se no alcoolismo e a gastar o dinheiro dos subsídios em bebida e tabaco, enquanto enfrenta o drama pessoal de ser vítima de 'bullying' por ser “diferente” dos outros rapazes, tentando desesperadamente encaixar-se, sem perceber o que os outros já tinham percebido, a sua homossexualidade.
Os filhos fazem o melhor que podem para cuidar de si e da mãe, mas gradualmente veem-se obrigados a abandonar a casa materna para tentar pelo menos escapar. Fica Shuggie Bain, o mais novo, que adora a mãe e não perde a esperança de a salvar.
Apesar das semelhanças com a sua própria vida, Douglas Stuart garante que este é um “trabalho de ficção”, embora reconheça que cresceu em condições muito similares, e descreve o livro como uma “saga familiar”, mas sobretudo “uma história de amor”, de um filho pela mãe, que também é a busca por amor dessa mulher, Agnes.
“Cresci como o filho mais novo de uma mãe solteira que lutava para manter a família unida na Glasgow pós-industrial. A minha mãe sofreu de alcoolismo desde que tenho memória até morrer, quando eu tinha 16 anos. E eu era também um jovem ‘queer’, ou gay, na altura, a viver num lugar onde os homens tinham de ser mesmo homens. Então, quando escrevo sobre pobreza, ou alcoolismo ou solidão, escrevo da perspetiva de quem está dentro”, contou à Lusa.
A dada altura do romance, Shuggie Bain encontra a mãe inconsciente na cama, vira-lhe a cabeça para que não asfixie com o próprio vómito e, antes de sair para a escola, deixa junto à cama três canecas: uma com água da torneira, para a garganta dorida, uma com leite, para sossegar o estômago, e uma com os restos da cerveja que reunira pela casa. “Sabia que essa seria a primeira caneca que a mãe procuraria, a que lhe sossegaria o pranto dos ossos”.
Douglas Stuart acredita que todas as crianças filhas de adictos, a certa altura, tornam-se “o adulto da casa”, mesmo sendo muito novos.
“Quando as pessoas sofrem de adição, a sociedade tende a afastá-las e virar-lhes as costas e há um enorme isolamento. Eu quis que os filhos de Agnes a amassem profundamente e tentassem e quisessem salvá-la, mas claro que às vezes é impossível. A dependência de alguém não tem a ver com ninguém, nem com os filhos”.
Por isso, no livro, as crianças acabam por se dar conta de uma inevitabilidade: “Até onde se vai para salvar a pessoa que mais se ama, antes de ter de se salvar a si próprio?”, explicou.
Essa ideia é principalmente explorada no romance através do irmão de Shuggie, o segundo a abandonar a casa (depois da irmã mais velha), que mesmo antes de sair lhe diz: “A mãe nunca vai melhorar. Quando for a altura certa, tens de sair daqui. A única pessoa que podes salvar és tu”.
Douglas Stuart diz que a razão por que o livro não deve ser lido como se cada cena fosse uma parte da sua vida é o aparecimento de todo um elenco de personagens, durante o processo da escrita, que “começaram a contar as suas histórias e a falar de Glasgow, sobre os seus próprios sonhos e esperanças e de como iriam sobreviver”.
“Acho que esse é o gozo de escrever um romance sobre a classe trabalhadora, porque tanta gente atravessa o mesmo tipo de problemas ao mesmo tempo. Este livro é muitas vezes uma história sobre Glasgow, ela própria, e não apenas sobre esta única família no centro de tudo”.
“Glasgow é a minha casa, a cidade que amo. Tentei recriar uma cidade que mudou e também um tempo que já não existe, foi essa saudade que me permitiu trabalhar neste livro durante dez anos. Mas embora Shuggie se passe em certas partes de Glasgow, Glasgow é uma cidade muito diversificada, tem muita riqueza, pessoas abastadas, tem algumas das universidades mais antigas do mundo, mas também tem uma classe trabalhadora muito forte, por isso, ‘Shuggie’ não fala da cidade como um todo, fala por comunidades da classe trabalhadora, muito especificas nos anos 1980”.
A homofobia de que o escritor foi alvo na infância também está refletida em Shuggie, sozinho, sem amigos, maltratado, pelos colegas e vizinhos, devido à sua sensibilidade, forma de falar e de se mover.
“Quando eu era mais novo, a homofobia ou o isolamento de que fui alvo aconteceu muito cedo na minha vida. Eu tinha à volta de sete anos e os outros rapazes é que apontavam o facto de eu ser diferente e, na verdade, eu não era assim tão diferente. Era talvez um pouco mais sensível mais sossegado. Isso tornou-se a minha infância, ou era vítima de 'bullying', ou era excluído, ou envolvido em lutas físicas, era sempre apontado como sendo um rapaz afeminado”.
“Eu não tinha qualquer conceção sobre isso, aos 6 ou 7 anos não se tem noção de género ou de sexo, mas eles, com certeza, conseguiam ver que eu não era como eles, e isso realmente acompanhou-me durante a minha infância. Uma das coisas que quis retratar no livro é que as pessoas ‘queer’, naquela altura, cresciam a achar que havia algo de errado com elas que deveria ser corrigido, que deveria mudar”.
Shuggie passa grande parte do livro a tentar aprender como andar e como ser como os outros rapazes, a tentar desenvolver interesse por futebol, para se sentir normal.
“Essa é uma parte doentia da homofobia, que faz as pessoas odiarem-se a si próprias”, afirmou o escritor, confessando que se odiou, porque se sentia “incrivelmente errado como criança”.
“Mesmo as pessoas que te amavam e que te queriam a salvo não sabiam como tratar as pessoas gay, não sabiam tratá-las como uma parte da sociedade ou com respeito, e o que mostro no livro é que, apesar de a família de Shuggie o adorar, continua a ter esperança de que ele mude e se torne um rapaz diferente”.
O romance começou a ser escrito por uma compulsão nascida da necessidade de passar para o papel “histórias que queria contar, imagens que eram pensamentos”.
“Quando comecei a escrever o livro, há dez anos, não me permitia admitir que estava a tentar escrever um livro, porque me sentia muito intimidado pela ideia de escrever uma coisa que eventualmente fosse grande, e tudo o que fiz foi sentar-me e escrever”.
Escreveu capítulos como se fossem contos ou ‘vignettes’ sem qualquer noção de querer torná-los algo maior, só muito mais tarde é que pensou “Oh, isto é um livro”.
Stuart admite que na infância não tinha quaisquer livros em casa, “o que não era invulgar naquela atura e naquele sitio”, o que não quer dizer que não fosse curioso e não soubesse contar uma história, porque “há uma forte tradição oral muito antiga na Escócia e na Irlanda”.
A ideia de querer ser escritor só apareceu a partir dos 30 anos, e durante muito tempo “uma das coisas mais difíceis de fazer foi ultrapassar esses sentimentos de inferioridade, o sentimento de ‘quem sou eu para escrever um livro?’”, confessou.
“Enquanto trabalhava em ‘Shuggie Bain’, não disse a ninguém, não disse à minha família, a nenhum dos meus amigos, e a única pessoa que sabia que eu estava a escrever um livro era o meu marido [Michael Cary, curador de arte], porque me via, sentado num canto a escrever. Mas eu tinha tanto medo de ser julgado pelas pessoas, que sentia que este era um projeto pessoal, só para mim”.
Hoje em dia, a cidade de Glasgow tem um mural dedicado a “Shuggie Bain”, o que é “um lindo tributo, considerando que Glasgow é a cidade que inspirou as palavras do livro e que essas palavras agora estão projetadas na cidade. É um enorme mural de 24 metros de comprimento, num dos mais famosos edifícios da cidade, portanto já não me sinto tão ansioso”.
Após a rejeição inicial de 44 editoras, o livro acabou por ser publicado pela Pan MacMillan e arrecadou um dos mais prestigiados prémios literários em língua inglesa, o Prémio Booker. Na altura, Douglas Stuart já tinha terminado o seu segundo romance, “Young Mungo”, que será lançado em abril de 2022, o que o livrou de escrever sob a pressão de corresponder à expectativa criada por um prémio, contou.
Trata-se de um romance que temporalmente recupera a época em que termina “Shuggie Bain”, em 1992, e explora a paixão entre dois jovens – Mungo e James -, também no meio masculinizado e da classe trabalhadora de Glasgow.
Para já os dois livros formam um “díptico”, mas o autor planeia fazer uma trilogia centrada em Glasgow. “Depois saio e volto para Nova Iorque”.
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